Uma resposta paranoica, apenas


Houve um tempo em que falar sobre drogas ilícitas e drogados era algo difícil. E, metaforicamente, publicávamos doloridas cartas, em nosso Jornal semanário “Barriga Verde”, insinuando histórias, como esta escrita em mil e novecentos e setenta e cinco.

 

Amiga,

quando me falaste de nosso pequeno príncipe fracassado, comparando-o a uma inútil semente alienada e fraca que já não saberia viver sob os raios do sol que a ofuscavam e nem voltar à terra de onde viera, eu, realmente, fiquei sem resposta.

Magoada? Não sei. Triste? Não sei.

O que sei apenas é que tudo aquilo eu já sabia. Mas sei também que todo o ser humano tem direito à ajuda mais profunda quando dela necessita.

E eu jamais renegaria uma semente semimorta ou um pequeno caule amarelecido e minado pelas intempéries. Porque, bem o sabes, eu sempre consegui encontrar valor em cada ser humano … eu sempre soube ver o sol e céus azulados através de neblinas e das mais espessas nuvens.

Não amiga, jamais me considerei culpada por fracassos que não eram meus. Mas eu tinha uma dedicação especial por aquela semente.

Por que cuidar das demais que eram viçosas? Que eram mais perfeitas? Que conseguiam, sozinhas, encontrar o caminho para a luz?

Não, amiga, aquele ser era frágil e eu tinha múltiplas razões. Múltiplas razões, que sempre conheceste, para defendê-lo. Defendê-lo, pelo menos, enquanto ele de mim precisou. Defendê-lo, como afirmaste, até dele mesmo.

Com suas imensas falhas, ele não admitia falhas. Para ele, houve um tempo em que a minha “luz era luz da estrela mais perfeita” … E, na obnubilação em que vivia, acostumou-se a ver em mim o único caminho. E ele, com suas imensas falhas, não admitia falhas …

À medida que a sua mente, que descreveste como alienada, foi vislumbrando a realidade do mundo e da vida, vislumbrou, também, “que o belo-perfeito não nos é dado conceber”.

E viu que tu e eu e todos nós éramos erros empacotados e amontoados na tentativa, nem sempre tão inútil, de galgar os caminhos certos para atingirmos um mundo melhor.

E então vieram as torrentes alucinatórias que o estão minando sempre mais, enquanto ele busca o retorno à alienação. Não creio que seja mau. Nem egoísta. Apenas descobriu outras estrelas, outros deuses, procurando outros caminhos. E conseguiu apagar os rastros de quem o conduziu, por tanto tempo, ainda cego, pelas mãos.

Conseguiu apagar as luzes que ficaram para trás. Talvez elas o estivessem ofuscando e remotamente lhe lembrando “do raio luminoso de algum sol.”

Não sei agora em que andanças se mistura e se corrói. Ou … talvez esteja evoluindo em um conceito que diverge daquilo que para tantos e tantas é o real.

Nada sei …

Apenas vislumbro uma hedionda face transtornada pelo ódio e que me fez ler, novamente, a carta que escreveste…

Sabes … na fumaça que arde ainda em meus olhos … como num flanar de asas entre dedos … ele partiu.

E agora, apenas lembro, com num pesadelo interminável, o poeta que em versos explodia “a mão que afaga é a mesma que apedreja.”

Eu nada mais tenho a dizer, amiga.

Não há compreensão em um mundo de desamor.

Se as tuas mãos espalham bondade, recolhe-a. Ela poderá ser dilapidada por aquele que recebe a esmola.

Não, amiga, eu não estou magoada contigo. Mas triste fiquei com tua carta.

Muito tempo já se passou. E eu jamais supus que ela encerrasse tanta profecia.

Ou seriam os meus olhos cegos, e os meus ouvidos surdos e a minha mente obtusa?

Não, amiga, eu não estou magoada. Estou assim … estática … em suspenso, num vácuo, sem saída. Sem ânimo para qualquer luta continuar. Sem coragem para enfrentar a multidão que me atordoa ou que pede, em vão, por um sorriso amigo.

Estou em busca de uma fuga, de uma toca escurecida, em busca do encantado mundo do esquecimento total.  Eu gostaria de encontrar os páramos tranquilos onde ninguém conseguisse me encontrar. E que de mim ninguém se lembrasse jamais.

Eu gostaria de ser a perdida flor que murchou na sarjeta e para longe escorreu na primeira enxurrada, esquecida de todos.

Eu gostaria de ser o ser incógnito e de mente obtusa que, misturado à multidão, para ninguém sorrir precisasse. E se sorrisse, não precisasse dar explicações.

Eu gostaria de ser o inseto de curta sobrevida.

Tudo isto eu quisera ser.

Mas, com o direito de ser eu.

De gargalhar esquizofrenicamente. Ou convulsivamente chorar.

De ter o direito de cantar desafinado.

De escrever errado.

De bater meu carro.

De ficar devendo.

E de a ninguém mais atender.

Eu queria ter o direito de sonhar o meu sonho sem paredes.

De ter insônias…

… mas nem tenho tempo para deitar e dormir.





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