Uma outra pandemia: Nos tempos do Cólera


Cólera

Na triste ilusão de que as baixas temperaturas exterminariam o bacilo assassino, a população consumia pescados congelados

 

Estamos passando por um período de incertezas. Um período de preocupações. Com a nossa saúde e com a saúde dos que nos rodeiam. Notícias que, em tempos nem tão remotos, corriam de boca em boca, a espalhar-se pelas rádios popularmente conhecidas pelos nomes de “Tamanco”, “Peão” ou “Corredor”, hoje se reproduzem pelas redes sociais com a velocidade da luz. Uma grande parcela, infelizmente, baseada apenas em fatos obscuros, fatos que encobrem a verdade, fatos que alucinações macabras até resolvem incutir pelas mentes do mundinho que nos envolve.

 

 

 

E as pessoas ficam na deriva, sem saber em quem acreditar. Sem saber que rumo seguir. Tenho lido tantos horrores numa vã tentativa de encobrir a ignorância sobre um assunto tão sério que é a saúde e a vida dos que nos rodeiam.

 

 

 

Enquanto profissionais de saúde zelam por nós, sacrificam-se, vivem separados dos seus entes amados, a prepotência humana chama de histeria a pandemia que nos aflige.
Não pretendia falar, nesta coluna, sobre um assunto que muito me entristece. Preferiria divagar por espaços solitários ao encontro dos fantasmas dançantes que envolvem as noites minhas.

 

 

 

Saber que ao nosso lado, perto de nós, uma pessoa que muito trabalhou, que viveu rodeada pelo amor de sua família e pelo carinho de seus amigos foi afetada pelo vírus causador desta pandemia que assola o mundo é algo que me apunhala o coração. Mas mais triste eu fico ao saber que, ainda assim, com a dor e a morte grassando ao nosso lado o sorriso debochado da descrença continua a imperar.

 

 

 

E na esteira desta pandemia eu me volto para os tempos em que apenas a Rádio Tamanco espalhava as notícias pelo centro e pelos bairros, pela periferia e pelos arrabaldes, pelas vilas e distantes rincões.

 

 

Sei que desde os séculos que se foram o Cólera morbus anda circulando pelo mundo. Que, por várias vezes chegou ao nosso país. Mas daquelas de outros tempos eu não posso falar. Eu não estava lá. Pelo menos não com estas vestimentas carnais com as quais meu espírito hoje está coberto.

 

 

 

 

Estivemos em polvorosa na última década do século passado, quando, através do vizinho Peru a peste inundou a América Latina. Chegou ao Amazonas. Alastrou-se pelo Norte e Nordeste e aterrissou, já debilmente, no Rio de Janeiro.

 

 

 

Tratava-se de um hóspede conhecido. Em formato de bacilo negativo ao Gram. Com nome e sobrenome. O Vibrio cholerae. Suscetível já ao nosso armamentário farmacológico de então.

 

 

Inúmeras foram as controvérsias sobre a sua chegada ao Peru. Foi aventada até a possibilidade de cepas do Vibrião colérico terem sido lançadas do espaço por alguma aeronave. Hipótese que se confirmava pela contaminação, que se dizia ser a primeira, a de uma pessoa em uma montanha no alto mais alto dos Andes Peruanos.

 

 

 

Mas nada disto está confirmado, ou sequer citado, nas reconhecidas publicações científicas peruanas. A Acta Medica do vizinho país andino traz relatos oficiais da pandemia que dizimou milhares de vidas em seu território. Mostra-nos, com detalhes científicos, que a porta de entrada se deu pelo litoral, pelas vilas de pescadores. O que deixa um ponto de interrogação é o modo como lá o vibrião colérico chegou.

 

 

 

Na triste ilusão de que as baixas temperaturas exterminariam o bacilo assassino, a população consumia pescados congelados. Crus. Corria, até em meio das nossas palestras, um incidente envolvendo o ministro da saúde do Peru. Teria saboreado, em frente ao público, um peixe, com a intenção de provar que o vibrião não sobreviveria ao congelamento. Esteve internado em lastimável estado de desidratação e choque hipovolêmico. Nada afirmo porque eu não estava lá e nada vi e nem li sobre este fato. Pode até ter sido mais uma da tal “Rádio Tamanco”.

 

 

 

Imaginava-se que a acidez das águas do rio Amazonas e Negro impedissem a sua chegada a Manaus. Lá chegou, sim, por via fluvial. Mas não pelas águas do rio. Pelos passageiros que, em barcos, vindos das partes peruanas, aportaram na capital amazonense.
E então a disseminação fluiu em sentido nordeste e sul.

 

 

 

Enquanto isto, nós aqui, participávamos de palestras e seminários e cursos oferecidos pela Secretaria Estadual de Saúde. O chefe do setor de epidemiologia, que era o nosso conterrâneo Oswaldo Vitorino Ferreira Oliveira, mais conhecido, não só por seus amigos, familiares e manezinhos da Ilha, como também pelo mundo científico de então, como Dr. Totico, esteve, por diversas vezes, em nossa região, a fim de transmitir as atualizações sobre a nova pandemia que assolava a América Latina.

 

 

 

 

Estávamos preparados, inflados de conhecimentos teóricos sobre a terrível morbidade que ceifava vidas, assim como a foice vai ceifando o trigo nas plantações.

 

 

 

O baixo índice de desenvolvimento humano das comunidades dos países da América Latina, a América pobre, a América subdesenvolvida, era um terreno fértil para a disseminação não só do Cólera, como de qualquer doença que de um mínimo de conceitos de higiene necessitasse.

 

 

 

O problema crucial do deficiente número de leitos no Peru, levou hospitais a fixarem, nas portas de entrada, cartazes com os dizeres: “Não temos mais vagas. Por favor, não insista”.
Foi então que se iniciaram as fabulosas campanhas, não apenas lá, como em todo o continente sul-americano para que as pessoas lavassem as mãos antes e depois de fazerem suas necessidades fisiológicas, antes e depois de se alimentarem.

 

 

 

 

Uma pandemia que dizimou milhares de vidas dentre as mais pobres. Dentre as que não tinham acesso sequer a uma água potável. Que usavam para beber a água onde esgotos eram despejados.

 

 

 

Como não poderia deixar de ser, chegaram até nós os arautos da modernidade. Até participei de uma reunião com um emissário que propunha vantagens de outros planetas para que implantássemos o esgoto sanitário em nossa cidade. Que havia muita verba federal para isto. Que o senhor arauto seria o intermediário. Que era só promulgar o decreto municipal e assinar o contrato.

 

 

 

O tom de voz, a indumentária, o estilo de malandragem estava no ar. Creio que os demais sentiram, como eu, que se tratava de uma pilantragem. Com a diplomacia e o senso político de quem deveria bater o martelo veio a famosa frase: “Vamos pensar e depois avisaremos.” A resposta do pilantra não tardou: “Tem que ser hoje. É pegar ou lagar”. Largamos. E se algum município aceitou… não sei até hoje como se explicou…

 

 

 

 

O Hospital Santa Cruz tomou as providências necessárias. Foram reservados alguns leitos para isolamento para os pacientes com cólera.

 

 

 

Colhia-se o material de todos os indivíduos que apresentassem gastroenterite, a fim de que fossem analisados pelo Laboratório Central do Estado.

 

 

 

Os sintomas da doença eram realmente trágicos. Os pacientes perdiam não apenas a água total do corpo, como toda a gordura e massa muscular. Consta que havia casos de perda de quarenta quilos em poucas semanas. O que levou a um colaborador, bem gordinho, de nosso hospital, a me pedir, jocosamente, que conseguisse para ele uma cepa do Cholera morbus. Porque só assim emagreceria…

 

 

 

 

A epidemia mal chegou ao Rio de Janeiro. Parece-me que houve um caso no vizinho estado do Paraná. Não autóctone. O paciente contaminara-se em algum lugar do norte ou nordeste, para onde havia viajado.

 

 

 

Mas, não é mesmo, sempre há um mas… Sempre há alguém que quer e precisa aparecer. Havia um paciente internado com uma colossal gastroenterite. Com febre e todo o séquito que envolve este quadro. Não deu outra. Assim do nada, alguns integrantes dos jornais e rádios locais já lá em nosso hospital amanheceram. Para saber detalhes. Fotografar e entrevistar o paciente. Foram barrados sumariamente. Com a promessa de que quando, e se, os resultados laboratoriais confirmassem a positividade para o Cholera morbus todos seriam avisados. O que nunca aconteceu. E o autor da prosopopeia teve de recolher os acessórios da artimanha que montara para anunciar uma pseudocatástrofe.

 

 

 

Mesmo que verdade tivesse sido, mesmo que positivo fosse o resultado, jamais se poderia divulgar foto e nome do paciente.

 

 

 

 

Porque os nossos segredos profissionais devem morrer conosco. Assim juramos! E assim devemos proceder!





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