Uma carta para Isis


Talvez, o que se passou por minha mente nesse tempo todo ficou gravado naqueles risquinhos doidos

 

Novembro de 1977

 

 

 

Amiga:

 

 

Uma velha caneta preta nas mãos. A busca por um pedaço de papel em branco. Que poderia ser rosa ou verde. A necessidade de nele impregnar angústias que atormentam meu eu interior. Assim eu me sinto. No afã de dizer algo para alguém. Para alguém que me entende. Rabiscos ditados pela alma para a amiga distante.

 

 

 

E a rabiscar desenhos malucos, num pedaço rasgado de papel, com os restos mortais de uma caneta que se foi, por longo tempo, eu fiquei.

 

 

 

E, talvez, o que se passou por minha mente nesse tempo todo ficou gravado naqueles risquinhos doidos.

 

 

 

Quase duas horas são decorridas. Tempo que durou esta cirurgia. Duas horas ao lado de um velhinho deitado nesta mesa ortopédica. Gemendo. Não de dor. Geme de cansaço pela incômoda posição em que teve de ficar. Acordado. Suas condições físicas impediam a ministração de qualquer medicação para sedá-lo. E, embora ele não reclamasse, seus gestos e sua agonia estampados na face barbuda, nos lábios arroxeados, no franzir da testa, deixavam-me nervosa. Alivia-nos o fato de saber que ele vai andar… que amanhã irá se sentar… A prótese, verdadeira arte de arquitetura, escultura e metalurgia que o ortopedista anexou em seu quadril, deixará seu membro inferior como se aquele fino pescoço de seu fêmur jamais tivesse tido uma solução de continuidade.

 

 

 

Há mais de duas horas aqui estamos. Agora posso escrever, pois apenas aguardo a fase imediata do pós operatório, com o paciente na sala de recuperação. E enquanto rabisco, faço terapia mental para apagar as agruras destas últimas horas.

 

 

Ao escrever penso mais no que vai saindo, sem lógica, da mente, para, com um pouco de lógica, ser, em palavras, aqui colocado.

 

 

Quando a cirurgia findou, findara também a música no mini-cassete-gravador… Um violão solado por Toquinho… “Maresia”, uma composição dele e Vinicius. E o seu João saiu feliz da mesa para a maca, ouvindo algo do gosto dele, uma viola, como nos afirmou.

 

 

 

Ontem recebi o grosso envelope com teus recados e notícias de teu mundo. Foi bom saber que um raio bonito chegou a penetrar para dentro de teu eu e espalhar-se todo. Um raio que acionou o átomo da alegria para que ele em todas as tuas células se infiltrasse. Que envolvesse as fímbrias de tua alma. Que te invadisse inteirinha e te trouxesse de volta ao mundo palpável que deve ser pisado… O mundo como devemos vê-lo… Feio, sangrento e sujo, mas onde estamos e vivemos e nele plantarmos beleza, nele estancarmos o sangue. E torná-lo mais limpo. Para assim, um dia, dele sairmos, deixando-o melhor do que no dia em que o conhecemos.

 

 

 

Foi bom saber que poemas brotam fáceis, outra vez, daquela fonte que ficara lacrada, não deixando aflorar à superfície a água de seus mananciais cristalinos.

 

 

 

Nota-se que há nítida diferença entre o que estás escrevendo e os de algum tempo atrás. Atingiste um nível mais elevado de entendimento, simplesmente porque atingiste.

 

 

 

“Há o tempo do plantio e há o tempo da colheita.”

 

 

 

Tu não conheceste esta tua amiga em seus vinte ou vinte e cinco anos. Tu somente a conheces de quatro anos para cá. A amiga de muitas lágrimas roladas, de muitas vergastadas profundas num lombo salgado… Que aprendeu a maior lição da vida, vivendo… assim como é dado a cada criatura…

 

 

Outros ensinam-nos a vida da matéria… desenhar, traçar retas, curvas, medir ângulos, calcular o pôr do sol num certo dia, onde fica um coração material e como se multiplicam as células.

 

 

 

Aprendemos com os outros as notas musicais e como se grava um som para se obter o melhor efeito.

 

 

Mas aquela aura do espírito a purificar-se, aprende-se somente no decorrer dos milênios… Alguns, nessa jornada de agora já mostram, precocemente, esta cobertura… Outros precisam patinar bastante. Eu já patinei muito. Estou patinando ainda. E como já recebi mensagens orientadoras! …sem que as seguisse… Por isto, ainda, aqui estou. Sentindo o peso e a tristeza dos dias nublados.

 

Pausa! Para iniciarmos outra… agora uma Cesárea. Vamos sorrir e chorar juntos com este ser que chega… quem foi? A que vem? Incógnitas que o futuro traduzirá …

 

 

 

 

 

 

 

São cinco horas da tarde. Estou em casa ouvindo a orquestra de Franck Pourcel. Sentei-me em tantos cantos para repousar o físico. O espírito eu deitei em um tapete relvoso e voei. Ainda tremulam-me os músculos, ainda lateja, fortemente, o sangue nas artérias, mostrando-me que elas existem.

 

 

Consegui tapear a mente, tirando-a dos problemas sociais que preciso solver e que me envolvem. Mas, enquanto eu não conseguir levantar desta relva não adianta tentar solucionar algo.

 

 

 

Preciso lavar a alma, adquirir forças e partir novamente para ir em socorro espiritual mesmo. Repentinamente, eu me vejo cercada, outra vez, desses engasgos da vida a pedir meu auxílio. Eu sei que sozinha nada sou. Preciso demais do auxílio destes amigos espirituais, que jamais falham. Mas preciso é, também, que eu o mereça. E siga os conselhos, atenda as mensagens. Não posso seduzir-me pelas cores, ruídos e alegrias do lado material deste mundo. Por suas luzes coloridas… Mas acho difícil… porque, mesmo dentro deste meu viver conventual (ou quase), eu continuo com aqueles sonhos bem materiais… Estou agora num fabuloso iate… nas Antilhas… no Pacífico sul… no Mediterrâneo… voando… carros dourados, velozes… voando… cabelos voando…. deveriam ser louros e longos… que absurdo! Quanta vida vazia dentro destas douradas e avermelhadas aparências. Mas foi um sonho! E, às vezes, vejo-me, ainda, assim… e as duas coisas não cabem juntas. Sei que estou devaneando e nem sei se me entendes!

 

 

Penso que cada trecho de música me transporta a um ponto diferente da vida. De minha vida. Aonde eu me encontrava quando ouvi tal música… com quem eu estava… se eu estava só, lembro-me até do que eu pensava e o que sonhava.

 

 

 

Fui andar um pouco. Procurar um refrescante suco. Mamãe dorme em sua poltrona. Já não reclama mais de meu som. Ela continua no comando das coisas daqui. Mandou pintar a casa por dentro. Porque estava muito feia. Tem sempre uma verdurinha fresca de seu quintal e ovos de suas galinhas. Comprou pintinhos novos para que não se acabe a criação.
Conta-me das novelas, quando não as vejo (o que é comum). Conta-me das notícias do mundo que lê no “Estadão”, na “Veja”, ouve no “Trabuco”, no “Show de Jornal”, no “Hoje”, “A manhã” e outros porque “Você só quer ouvir música e não fica sabendo de nada do mundo” é o que ela me diz.

 

 

Estaremos assim aos oitenta e quatro anos?

 

 

 

Pelo telefone ela conversa com parentes, comadres e amigos de Curitiba e outros cantos mais. E está achando fabuloso este mundo assim tão fácil. Entristece-se com a poluição.
Como será o mundo depois dela?

 

 

 

Franck Pourcel brinda-me agora com “A Valsa do Adeus”, de Chopin. Eu quase não ouvia minhas músicas nesta aparelhagem, como tenho ouvido nestes últimos tempos… Às vezes, parece-me, que alguém solou junto à caixa de alto-falantes ali perto da porta. Não conheces ainda esta minha nova aquisição, este meu novo conjunto de som. E eu já quero trocá-lo por algo mais aperfeiçoado. Nunca estamos satisfeitos mesmo com o que temos.

 

 

 

 

 

Mas preciso deixar assim como está, senão nada reservarei para os próximos anos. Sei que irei embora daqui e preciso ir preparando a bagagem. Tenho medo agora. Medo porque já sinto as limitações físicas a me tolherem. Já preciso de uma janela graduada à frente dos meus olhos senão não consigo ler letras miúdas. A graduação da luz, no escuro, modifica-se… Partirei para um novo mundo precisando trabalhar para chegar àquela especialização que desejo. Mas o medo é uma poeira nos olhos. Passa-se a mão e a nuvem esvai-se. Quando for chegada a hora tudo dará certo.

 

 

 

 

Sinto-me, neste momento, mais leve.

 

 

Até algum dia, enquanto aguardo novos poemas que de tua mente escapam através das penas para os brancos da vida.

 

 

 

 

Um abraço da
Adair





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