O arroio estava cheio. De águas barrentas. Levava em seu bojo o lixo do mundo
Sempre viveu ao lado daquele arroio. Desde menina, desde quando da vida se lembra. Sentada nos degraus de madeira, que um dia foram brancos, ficava a olhar as águas embaixo a correr nos dias de sol. Fitava as águas a correr quase a seus pés nos tempos das grandes chuvas de outrora.
Era uma enorme valeta com barrentas águas trazendo em seu curso o lixo do mundo. Fora, em tempos passados e bons, um límpido regato, um regato que trazia lá de suas nascentes, do alto do morro, um filete de água saltitante e colorido pelo azul do céu, colorido pelas cores do arco-íris, trazendo a alegria da vida e jogando-a, sorridente, no rio que a cidade margeia.
Fora um límpido regato de águas da cor dos transparentes cristais, colorido pelo anil do céu quando ainda não havia cidade, quando não servia de transporte para o lixo dos homens, para o despejo da vida.
Agora ali está ele, o arroio triste e sujo, barrento, putrefato, cheio de velhas latas atoladas no fundo, cheio de esquisitos sobrenadantes que irão fertilizar as margens mais além…
E naquela chuva que não cessava há tantos dias o arroio foi enchendo, foi enchendo… foi rolando a terra de suas margens para o fundo de seu leito… e nesta sua insana metamorfose foi subindo, avançou pela rua, para um lado da rua, para o outro lado da rua, não deixando nem espaço para um carro trafegar.
Não deixando nem coragem para um vivente por ali andar.
Avançou, avançou nessas margens e chegou até os degraus de todas as casas. Para chegar naquela casa especial ele não precisava mais que um degrau para depois desaguar em cascata na escadaria, que feliz encontrou, e de onde, lentamente, se deixou escorrer…
E trouxe junto às angústias, as tristezas que encontrou pelo caminho. Trastes velhos ele trouxe, bugigangas sem valor, pedaços corroídos de vidas encontrados pelas sendas por onde andou.
E trouxe junto um livro que a menina recolheu. Um livro que se encostou junto ao degrau onde estavam seus pés. Um encharcado livro que a menina secou no forno da vovó. Que a menina enxugou com seu vestidinho de chita, alegre vestidinho todo enfeitado de flores.
Folheava-lo, primeiro em busca de imagens coloridas. Não as encontrou. Apenas palavras depois de palavras. Que achou muito lindas. Não tinha outro termo em sua mente, ainda, para definir as coisas das quais gostava. Não sabia ainda ler correntemente, mas devagar e com calma ia tentando decifrar o que aquelas letras lhe diziam. Só sabia que era tudo bonito.
Com os dedos tentava retirar a terra seca que grudara em muitas páginas. Muitas letras perderam-se na viagem em meio às águas, em meio à lama, em meio ao lixo.
Não queria mostrar para ninguém o tesouro que recebera de presente das águas barrentas do arroio. A avó poderia ver. Porque ela não enxergava bem mesmo. Não iria entender o que estava escrito porque ela só sabia ler em outra língua.
Um dia os pais encontraram o pequeno tesouro que a menina tentara esconder por tanto tempo. Horrorizaram-se com tantas palavras nele contidas. Palavras que a sua menininha jamais deveria aprender. Ela tentou convencê-los que fora um presente trazido, através das águas do arroio, pelo seu anjo da guarda. Que o colocou bem junto aos seus pés. Não adiantou prometerem que ela poderia voltar a lê-lo quando tivesse mais idade. Debaixo de seu travesseiro ele continuou por anos. Era o único livro em sua vida, além dos chatos livros da escola que ela já conhecia de cor.
As chuvas continuavam em cada estação. O arroio continuava a alagar as margens e invadir os degraus das casas da beira. A menina morena de ávidos olhos negros crescera e já espantava sua professora de língua portuguesa com pequenos poemas que escrevia. Onde aprendera tantas palavras difíceis para a sua idade?
Quando ela contava a história do tesouro que recebera de presente do arroio seus coleguinhas riam-se dela. E alguns professores também. Menos aquela professora especial que também gostava de escrever versos. E começou a emprestar livros e mais livros para a menina que menininha já não era mais.
E o gérmen da poesia que estava enclausurado despontou e floresceu. E ela escrevia versos e mais versos. Parecia que um cordão descia do espaço carregado com as mais belas palavras com as quais ela ia tecendo poemas em uma infinidade de páginas.
Mas sua poesia não lhe trazia felicidade. Seus pais aspiravam para ela um mundo mais prático. Porque no mundo, o que manda, é o sonar das moedas, falavam a todo instante, para atormentar seus ouvidos. Poesia não paga o pão e não compra um teto, eram as palavras, que até com doçura, sua mãe vivia a repetir. Eram ásperas palavras que de seus irmãos vivia a ouvir.
Conseguira escrever, em uma velha máquina de datilografia emprestada, uma coleção de versos seus em brancas folhas que depois grampeara, com muito cuidado. Imaginava que um dia aquilo tudo seria transformado em livro. Quando concluísse o Curso Normal, com os proventos de professora, talvez pudesse publicá-lo. Carregava-o sempre com ela. Medo que alguém dele se apoderasse.
Quando o amor bateu em sua porta pensou ter encontrado a outra tão esperada metade de sua vida. Queria mostrar-lhe o livro que iria publicar. E não mais o encontrou. Sabia que não seria o fogo que o havia consumido. Porque a esse tempo o velho fogão de lenha da vovó já não existia mais. Era em um mais moderno, a gás, que em sua casa se aquecia a água e se cozinhava.
O arroio a correr cheio, na barranca mais abaixo, continuava carregando com ele o lixo do mundo e os desapegos de tantos. Será? Pensou ela. Não quis mergulhar nesta tão triste ideia. Mas era o inevitável…
Não desistiu. Continuou derramando poesia por todos os lugares por onde andava. Pensava que o amor de sua vida entendesse esta sua loucura. Passava madrugadas a escrever no peitoril da janela, umedecido pela névoa da madrugada, sob a luz do lampião da rua. E novo livro estava pronto à espera de uma oportunidade para ser publicado.
Ela já tinha até o nome. “De minha janela… para o mundo”. E dentro de seus devaneios a eterna ladainha que já tantas vezes ouvira de sua mãe e de seus irmãos, repetia-se, letra por letra, da boca de alguém que ela pensara ser a sua outra metade. Mas as palavras que agora ouvia não vinham carregadas de ternura. Eram ásperas e grosseiras palavras que a deixavam estirada no chão.
Um dia o diretor de uma escola particular, onde ela lecionava Língua Portuguesa, pediu-lhe que trouxesse o seu livro. Seria algo inédito. A escola publicaria os poemas dela e as melhores poesias de algumas alunas.
Sua casa era pequena. Não tinha muitos escaninhos escondidos onde deixar seu tesouro. Em poucas horas revirou baús e armários, gavetas e velhas caixas de sapato onde guardava seus tesouros e nada de seus escritos encontrou.
O arroio estava cheio. De águas barrentas. Levava em seu bojo o lixo do mundo. Sentada nos degraus de sua casa, com a água que a seus pés, em borbotões escorria, a imagem da menina que fora em seus olhos apareceu. E triste, ali, encolhida, sob a chuva que do céu caia, ficou a cismar.
“Quantas lágrimas derramou uma solitária poetisa sonhadora… certamente morava bem lá mais acima onde o sol dá seu último adeus, lá no alto do morro onde a lua desponta mais linda… Quantas lágrimas verteram de seu coração quando não mais encontrou seus poemas… Belos poemas atirados nas aguas barrentas do arroio. E jamais imaginaria ter sido a musa inspiradora que guiou meus passos. Que foram os seus poemas que me deram vida. Oxalá os meus encontrem, pelas águas por onde correm, em algum degrau, alguma menininha que sonhe os meus tão sonhados sonhos também.”