Um Amor transcendental


Voaram por entre nuvens branquinhas e carregadas de raios de sol. Mas também enfrentaram todas as turbulências das intempéries abissais

 

 

 

Hoje ela passa, a sós, pela velha rua, alongando a vista para o espaço nu, onde antes se erguia, altaneira, a grande casa que a abrigara desde tempos que nem recorda.

 

 

 

Estaca defronte ao enferrujado portão de ferro, carcomido pelas intempéries. Por que estas intempéries não corroem também tanta saudade?

 

 

 

A imagem de um pequeno retângulo, fracamente iluminado, na parte superior, parece-lhe tão nítida, como se lá, naquele instante, ela estivesse.

 

 

Uma pequena janela. Um baixo peitoril. Onde passava, por vidas, pensa ela, a olhar o longínquo horizonte. Onde, nele sentada, ouvia os passarinhos do alvorecer. Onde, nas noites de luar sonhava com o Amor que, das galáxias viesse arrebatá-la para aqueles sonhos tão vívidos desde quando deixou de sonhar com bonecas de pano.

 

 

 

Não é uma saudade triste a saudade que a envolve, parada na rua, olhando o espaço vazio, onde o retângulo da pequena janela, desenhada na noite por uma luz indireta, inunda-lhe a memória com uma fantástica nitidez.

 

 

 

Ouve o farfalhar dos ramos do altaneiro cipreste, ondulados pelos suaves ventos da noite. Ouve o ranger dos ramos do altaneiro cipreste, agitados pelos tempestuosos ventos das noites de tempestade.

 

 

 

Quantas horas, de uma saudade inexplicável, sentada no pequeno peitoril, passou a olhar para um horizonte sem fim. Além do rio, a campina que mudava de cor em todas as estações.

 

 

 

Todas as cores do arco-íris semeadas na imensidão. Pelo tom de todas as flores que a natureza há milênios por lá semeou. Pelo verde do capim que soberbo e vicejante crescia. Pelo amarelo que o calor conferia à madurez das sementes que felizes sorriam ao sol. Depois o capim todo se vestia com as cores do outono. E com o branco do gelo, em todos os invernos, a campina se cobria.

 

 

 

 

Sentada no peitoril da pequena janela ficava horas à espera da imensa lua, grávida de luz, surgir nas fímbrias do horizonte, atrás na mata de araucárias, que de verde tingiam todo o horizonte.

 

 

 

Suas noites eram sempre verdes. Mesmo com a minguada luz de uma lua minguante. Porque o reflexo das estrelas no verde que a rodeava sempre fez de suas noites, belas noites verdes.

 

 

 

Riu sozinha, ali na rua deserta, a olhar para o espaço agora nu à sua frente. Nu para o resto do mundo. Jamais nu em sua imaginação.

 

 

Sorriu sozinha, ali na rua deserta, a olhar para o pequeno retângulo, iluminado fracamente por uma luz indireta do abajur da mesinha de cabeceira daquele quarto, onde, por tanto tempo, sonhou com o Amor.

 

 

 

Não que tivesse passado pela vida sem amar. Acomodou-se melhor, dentro de seu carrinho esportivo. De Chopin, ouvia o Opus 11, o Concerto de número 1, para piano. Uma antiga gravação de Arthur Rubinstein, seu pianista predileto.

 

 

 

 

E ficou a recordar dos amores todos que passaram por sua vida. Alguns turbulentos e efêmeros. Outros mais duradouros mas que pouco ou nada deixaram depois do fim. Ouros insossos. Mas nenhum marcou sua vida. Porque ela sabia que um dia o Amor haveria de chegar. Um Amor que ela tinha certeza que estaria por ai. Só não sabia nem onde e nem quando encontrá-lo-ia.

 

 

 

Vagava pela vida em sua rotina de todos os dias. Encontrava alegria por onde passava. Envolvia-se no âmago das questões que abraçava. E sempre, no fundo, bem no fundo aquele algo incompleto a lhe anuviar o espírito, quando, sentada, a sós, no peitoril daquele retângulo de sua janela, ficava a deslumbrar-se com as fímbrias de um luar a despontar no horizonte bem além das araucárias distantes.

 

 

 

 

O Amor já estava ao seu redor. Mas não se reconheceram. Por alguns anos cruzaram-se nas mesmas calçadas e nas mesmas vielas da vila em que viviam. Por mais algum tempo viam-se mais assiduamente. Porque o Amor escrevia lindos poemas e ela ficava embevecida a lê-los.

 

 

Até o dia em que cartas de poemas, falando de amor, do Amor recebeu. A surpresa dominou-a. Não acreditou que seria o Amor. Fugiu. Encastelou-se. Não, não seria possível. Não, não era um amor assim o Amor com que tanto sonhara.

 

 

O Amor não esmoreceu. Envolveu-a com seu sorriso doce e com seus poemas de amor.

 

 

 

 

E num dia de sol esplendente a que se seguiu um luar em noite verde, passaram horas a ouvir as músicas que sempre lhes embalavam a vida, num cantinho onde só a luz tremeluzente do aparelho de som bruxuleava na escuridão.

 

 

 

Depois passavam horas a olhar as noites verdes do alto do pequeno retângulo que era a janela do quarto onde, por anos, ela dormira com a solidão.

 

 

 

Mas o Amor já estava acorrentado em outra vida. Seus momentos a sós eram raros. Era um amor contado em poemas. Poemas que voavam quilômetros para encontrá-los nos caminhos distantes. Encontros de amor em finas folhas de papéis coloridos.

 

 

 

Voaram por entre nuvens branquinhas e carregadas de raios de sol. Mas também enfrentaram todas as turbulências das intempéries abissais.

 

 

 

Num dia ela recebia folhas e folhas cheias de palavras a confessar de uma saudade incontida, de uma saudade doída, de uma saudade sufocada, de uma saudade que a distância tornava a cada dia mais insuportável. De repente, avassaladoras despedidas com promessas radicais de sequer se olharem, pela eternidade afora.

 

 

 

A imensa riqueza do Amor eram os seus poemas, os seus versos, a sua inspiração que o acompanharam para a eternidade.

 

 

 

 

E no dia dos namorados, de um ano qualquer, este poema ela recebeu:

 

 

 

            “Um botão de rosa branca

             é o buquê e o jardim

            que tenho para te dar.

            Junto vou eu.

            Com meu coração inteiro

            e manso e mole

            de ternuras e desejos.

            Amo-te,

            minha linda menininha namorada.” *

           

 

 

 

 

E ela, ali na rua, agora, a olhar para o imaginário pequeno retângulo da janela de seu quarto sorriu de novo, ao reler o pequeno poema. Porque sempre levava consigo todos os poemas que o Amor lhe escreveu. Lembrou-se então das vezes em que por dias não se viam. Por causa de alguma rusga. Talvez. De algum ciúme sem sentido. Talvez. De alguma palavra mal colocada. Talvez. O Amor era cheio de melindres. Altamente sensível. Com fases de profunda depressão. Que ela não conseguia entender. Porque ela era de uma lucidez de fazer inveja e acreditava que todo mundo seria assim.

 

 

 

 

Mesmo na distância, mesmo entre espinhos, o amor não esmorecia. Mais profundamente era cravado em seus corações. Sabiam que jamais poderiam ter uma vida em comum. Mas o sonho jamais acabaria.

 

 

 

O Amor tinha um coração turbilhonado por agruras mil. E um dia ele acelerou demais nas curvas incessantes da vida até esborrachar-se contra os rochedos da incompreensão. Não suportou as incertezas do tempo. Incertezas do tempo… que acompanham a vida de todos os poetas.

 

 

 

Não, não é uma saudade triste a saudade que a envolve ali, parada na rua, olhando o espaço vazio, onde o retângulo da pequena janela, desenhada na noite por uma luz indireta, inunda-lhe a memória com uma fantástica nitidez.

 

 

 

 

Depois que o Amor subiu para as galáxias de onde viera, ela nunca mais sequer pensou em outro amor. Porque aquele foi o Amor sonhado e procurado por toda uma vida. Sentia, no fundo de seu âmago que aquele era o Amor que sobrevivera às intempéries de tantas vidas já vividas, talvez pelos séculos que se foram e que ainda será vivida pelos séculos que hão de vir. Em algum lugar, em alguma estrela.

 

 

 

 

*Variações em torno de um poema de Isis Maria Baukat





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