Um amor impossível na cidade azul (2)


Quanto Beatriz ficava sozinha, á noite, mil perguntas sem respostas batiam em sua mente

 

Depois daquela noite em que voaram como o vento, dentro de um jaguar prateado, encontravam-se em quase todos os dias da semana. Mesmo que fosse apenas para tomarem um cafezinho, em pé, no balcão do Café Alvorada, bem na esquina da menor avenida do mundo. Mesmo que fosse para uma rápida conversa informal, aos olhos de estranhos. O importante era o tônus para a vida. Uma mera troca de olhares que dizia tudo o que os lábios não poderiam exprimir.

 

 

 

Ela ficava o dia todo envolta em mil coisas. Além de suas aulas na faculdade de direito, seu trabalho na redação do jornal e estágio que fazia parte do currículo universitário, passara em um concurso público e devia cumprir horário no Tribunal de Justiça.

 

 

 

O escritório de advocacia de Diógenes era o local onde menos ele aparecia e quando lá se encontrava era para cuidar de outros interesses de sua tumultuada vida. Porque além de administrar a empresa de lubrificantes automotivos, era proprietário também de uma rede de postos de combustíveis e se auto apelidara ainda de picareta. Porque revendia carros importados usados.

 

 

 

Tivera uma infância e uma adolescência pródiga e feliz. Filho único de um casal que o mimara carinhosa e desmesuradamente. Antes mesmo de ingressar no curso superior já pilotava carros velozes. Mas não andava satisfeito em voar apenas no solo. Às escondidas fez um curso para pilotar aviões. Logo recebia o seu Brevê e em seguida adquirira um monomotor. Acrobacias aéreas mil, com seus companheiros, aprontava pelos céus da cidade azul e em seu entorno.

 

 

 

 

Mesmo depois de formado, já casado e com filhos continuava com estas peripécias aéreas. Precocemente teve que deixar de lado sua paixão pelos ares. Certa ocasião mal conseguiu fazer uma aterrisagem na base aérea que era o seu chão de todos os dias. Não conseguia sair do assento. Os colegas acorreram para ver o que estava acontecendo. Encontraram-no caído sobre o manche. Pálido. Ofegante. Levado às pressas para o hospital. Os pais e a esposa, aflitos a seu lado. E o diagnóstico fatal que veio com o veredicto de que não poderia mais voar.

 

 

 

 

Uma estenose da válvula mitral, que o acompanhava, talvez, desde a adolescência, consequência de uma moléstia reumática que naquele tempo o prendera ao leito por mais de um mês. Coisas que nem ele e nem os pais se lembravam mais.

 

 

 

Fez tratamento com os melhores médicos do país. Foi submetido a uma cirurgia cardíaca. Mas as sequelas sempre ficam. E de vez em quando ele percebia. No auge de suas mil funções e correrias algumas saraivadas de extra-sístoles fatigavam-no em demasia.

 

 

 

 

—Mas é tudo coisa passageira, Beatrizinha!

 

 

 

Ela não gostava deste zinha depois de seu nome. Mas ele garantia que era a forma mais afetuosa com que podia chamá-la. Ela era alta. Mas mesmo em cima dos saltos agulha de seus sapatos sua cabeça batia nos ombros dele.

 

 

Então ela entendeu os porquês dos mimos todos dos pais dele. Intensos cuidados para que o coração não viesse a ser afetado. Mas foi.

 

 

 

Quanto Beatriz ficava sozinha, á noite, mil perguntas sem respostas batiam em sua mente. Não encontrava os verdadeiros porquês de ter se envolvido com alguém que jamais poderia ser dela inteiramente. Não suportava mais dividir aquele amor. E dele ela não conseguia se desvencilhar.

 

 

 

Quando estavam juntos passavam horas inteiras a conversar. Parecia já que ele não dava mais um passo sem saber a opinião dela. Na maior parte das noites ficavam dentro do carro, ao lado do bucólico restaurante à beira de um rio Iguaçu ainda menino. Comiam alguma coisa e ficavam a bebericar o eterno uísque com gelo.

 

 

 

Falavam sobre música. Popular e clássica. Ele até dedilhava bem um piano. Fizera parte, quando mais jovem e com menos responsabilidades, de um grupo de jazz. Contava de suas viagens ao exterior. Do dia em que o avião fez um pouso forçado em Havana quando estavam a caminho de Miami. Do exagero em rum que lá bebera. Quase não conseguiu retornar à aeronave. Dissecavam os filmes que assistiam. E sonhavam com o dia em que juntos pudessem apreciar apresentações teatrais. Sonhavam…

 

 

 

 

Doutras vezes ele a levava para jantarem em um restaurante francês, o Île de France, bem perto do Passeio Público. Localizava-se em antiga mansão. Em vez de um grande salão, diversas pequenas salas. Podiam ficar ali por horas sem se preocupar em ser vistos por curiosos olhares.

 

 

 

 

O restaurante servia um inigualável e verdadeiro Strogonoff. Sempre saboreado com um fino vinho francês.

 

 

 

Já estavam tão acostumados a se ver, quase diariamente, que Diógenes levou um susto quando Beatriz lhe falou que nas férias de julho iria fazer uma grande viagem. Com seus colegas de turma da faculdade. Viagem de fim de curso. Juntara suas economias no decorrer de todos aqueles anos de estudo. Seria a viagem de sonhos de sua vida. O desespero desandou. Ele não se conformava. Ficar um mês sem vê-la. Já queria dar um jeito de ir junto. O que seria impossível.

 

 

 

Levou-a ao aeroporto. O ciúme roendo quando a viu rodeada pelos colegas com quem passaria tantos dias. Conteve-se, porém. Sorriu amarelo. Deu um beijo em seu rosto e tomou o rumo da cidade azul. Sozinho.

 

 

 

De onde ela estava enviava-lhe telegramas cheios de saudade. No entardecer do dia do retorno ele estava no aeroporto à sua espera.

 

 

 

Viu-a, ao longe, a descer as escadas do avião. Estava linda. Parecia uma atriz de cinema, com seu longo casaco vermelho e um charmoso chapeuzinho preto a cair de lado sobre sua testa. Conteve-se para não correr abraçá-la e carregá-la em seus braços. Conteve-se até o momento em que a sós ficaram dentro do carro. Ela pediu que a deixasse na rodoviária. Deveria pegar o ônibus para ir até a cidade onde morava sua família. Trazia presente para todos. Tinha poucos dias para lá ficar. Acabavam-se as férias. Da faculdade e de seu emprego. Do jornal férias jamais usufruía. De onde estava enviava textos e fotos que diariamente em sua coluna eram publicadas.

 

 

 

Diógenes concordou com ela. Sorrindo e conversando foi levando o carro. Mas não em direção à estação rodoviária. Levou-a a uma chácara que ele tinha recém adquirido no caminho da estrada da Graciosa. Os portões estavam abertos e o carro passou por uma alameda encascalhada rodeada de hortênsias. Que agora, em pleno inverno, não mostravam suas cores.

 

 

 

Estacionou ao lado de um chalé feito de troncos de pinheiros envernizados. Ela olhava para ele estupefata. O silêncio na mata era encantador. Só cortado pelas aves que se recolhiam a seus ninhos. Já escurecia na cidade azul. Uma cor de céu estonteante aquela cor de um crepúsculo que se esvanecia e uma fímbria da lua cheia que começava a emoldurar o outro lado do horizonte.

 

 

 

Beatriz petrificada ante tanta beleza deixou-se ficar no carro. Ele abriu a porta ao lado dela e tomou-a em seus braços e a levou para dentro do chalé. Uma sala aquecida com fogo crepitando na lareira. Em algum canto, de um toca-discos, emergiam sons de puro encanto. Ela olhava em torno e mais embevecida ficava. Entre beijos ele a colocou no sofá.

 

 

 

Sobre a mesa uma campainha que ele fez soar. E logo alguém surgiu da semiobscuridade com duas borbulhantes taças de champanhe.

 

 

 

Beatriz já estava com os olhos marejados de lágrimas.

 

 

—Case comigo, minha linda menininha namorada… — e começou a chorar também porque sabia que estava pedindo o impossível.

 

 

 

Brindaram ao amor e à saudade.

 

 

 

Na outra sala a mesa posta. Ela não via e nem ouvia ninguém. Reconheceu a porcelana, a prata e os cristais. E depois o aroma da ceia servida. Ele mandara vir tudo daquele restaurante francês. Incluindo o vinho. Indescritível.

 

 

 

E foi esta a sua primeira noite juntos. Foi a noite de enlevos em que, pela primeira vez seus corpos se uniram. Acordaram com a luz do sol atravessando os pinheirais e o branco do gelo a estender-se no verde em redor. O café na mesa com croissants e brioches. Ela se imaginou nos arredores de Paris.

 

 

 

Aqueles meses de fim de curso correram tumultuados. Encontravam-se, quando podiam, nos lugares mais inusitados que só a imaginação de Diógenes conseguia inventar.

 

 

 

Certa vez ele queria que ela deixasse o emprego e fosse fazer o estágio no escritório dele. Sentiu um laivo de poder a estender as asas sobre ela. Não aceitou. Desculpou-se de mil formas. Fez ele entender que no Tribunal de Justiça ela poderia continuar uma carreia. Que o estágio no escritório dele era impossível porque havia o escritório jurídico da própria faculdade.

 

 

 

Doutra vez ele lhe deu de presente uma máquina de escrever, portátil. Que ela não aceitou. Não queria presentes dele.

 

 

 

—Mas é para você escrever as suas matérias do jornal em casa. Assim você não precisa mais passar horas lá na redação.

 

 

 

Beatriz ficou com os cabelos arrepiados. Jamais imaginara em ficar sob os tacões de um homem. E agora isto…

 

 

 

Ela já tinha desistido de continuar com aquele trabalho no Tribunal de Justiça depois de formada. Conseguira uma bolsa e matriculara-se em curso de pós-graduação, em tempo integral, em Santos. E um emprego no melhor jornal da baixada santista também.

 

 

Não imaginava os rodeios que ele fazia para mantê-la na cidade azul. Quando percebeu, o nome dela já se encontrava como assistente voluntária da cátedra de Direito do Trabalho. Que deveria assumir logo após a formatura. Ele já programara a vida dela para perto dele permanecer. Falara com seus pais. Que conseguiram, em tempo recorde, o cargo para ela.

 

 

 

Beatriz arrumou sua pequena mudança. Deixou tudo organizado. Passou as festas de fim de ano, no interior, com sua família. Já no começo de janeiro lá estava ela, feliz, seguindo a vida com a qual sempre sonhara.

 

 

 

Feliz? Sentia falta de alguém. Sentia a falta dele. Quantas vezes ia aos barzinhos com seus colegas e amigos, que distantes estavam também de seus amores, e ficavam a bebericar seus uísques com gelo, ouvindo plangentes pianos e violões a solar melodias de fossa e de saudade.

 

 

 

Não foi fácil anular aquele amor. Horas infindas de dor ela ainda palmilharia.

 





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