Pedaços de uma Epopeia*


Era madrugada ainda quando as âncoras foram içadas e a massa fumegante do vapor das caldeiras começou a impulsionar a nave para o alto mar

 

 

 

Braços apoiados na balaustrada do convés do navio, mais conhecido, na época, pelo nome de vapor, ela olhava, pela última vez, o solo amado que a viu nascer. Sonhos deixados para trás. Sonhos de uma nova vida na pujante América, tão cantada e contada por aqueles que lá haviam já colocado os pés. Alguém como o seu Enrico que na capital do Brasil já estivera e retornara para a sua terra com milhões de ideias para que sua família jamais voltasse a passar fome.

 

 

 

Ela era de Verona, do Vêneto. Nascera e pautara sua vida naqueles verdes campos sem fim, do vale do Adige. Uma tenra grama que saciara a fome dos velozes corcéis da cavalaria de Napoleão Bonaparte nos tempos em que o intrépido corso invadira a, ainda, não unificada Itália.

 

 

 

Embalados na euforia de um novo nascer para as suas vidas, juntaram os poucos pertences que lhes restaram depois que a luta pela sobrevivência em sua terra tornara-se uma luta inglória.

 

 

 

Lentamente, o navio distanciava-se do porto de Gênova e o Mediterrâneo, no seu todo aos seus olhos despontava. Era madrugada ainda quando as âncoras foram içadas e a massa fumegante do vapor das caldeiras começou a impulsionar a nave para o alto mar.

 

 

 

Movia-se a terra e o sol em breve começou a aparecer num horizonte azul. O azul da infinita abóboda celeste a naufragar nas águas azuis do Mar da Ligúria. O mesmo mar azul que ela conhecera do lado leste de sua terra, tão igual ao Adriático que inundava Veneza.

 

 

Embevecida com aquele inebriante azul que se encharcava com as cores do fogo que o sol projetava nas águas não percebeu alguém a seu lado. Apenas ouviu uma voz, em surdina, quase a tocar-lhe os ouvidos comparando seus olhos com a cor do céu, com a cor do mar. Foi um instante só para que seus olhos mudassem da placidez para a fúria e uma estrondosa bofetada deixou marcas na face do intruso que ousara tirar-lhe a paz daquela madrugada.

 

 

Indignada deixou suas divagações de lado e retornou a seu camarim. Desceu, atabalhoadamente, as escadarias até abaixo da linha d’água onde estava alojada junto com os seus.

 

 

 

A gravidez de seu segundo filho já fazia com que enjoasse muito e imaginara que um ar puro no convés vazio melhoraria suas angústias. Conhecendo muito bem a impetuosidade de seu Enrico não ousou contar-lhe o acontecido. Ângela, sua mãe já havia acomodado o pequeno Enzo no leito e colocado a bagagem sobre uma bancada ao lado dos beliches.

 

 

 

E o navio a vapor, lotado de imigrantes iguais a eles que na América vislumbravam uma vida melhor, singrava pelas águas do Mediterrâneo.

 

 

Desde o insólito amanhecer, em que o furor que dominou suas entranhas, ela apenas circulava pelo convés de cima, junto com os seus. Mas seu espírito, carregado de poesia, sentia falta das magníficas visões que eram os crepúsculos em pleno mar.

 

 

Os dias corriam com suas ânsias internas que lhe deixavam a cada dia mais pálida. Pouco se alimentava. A nostalgia a se abater dos passageiros na vastidão do mar. E as melodias eternas que conheciam desde antes de nascer eram entoadas em toda a parte. Tarantelas, árias e coros de óperas e a bela Santa Lucia atravessavam os ares por onde singrava o navio. Atravessavam a alma dos imigrantes. Muitos músicos, com seus violinos e bandoneons, suas guitarras e cítaras tentavam empurrar a melancolia que os abatia para as profundezas do mar.

 

 

 

Stella deixou-se ficar, por dias, acomodada no beliche de sua cabine. Não saía mais nem para ver o sol. Enrico encarregava-se de levar o pequeno Enzo e Ângela para o salão de refeições, para uma caminhada pelos conveses.

 

 

 

Numa destas andanças o cavalheiro que se aproximara de Stella, na madrugada em que o navio se afastava do porto de Gênova, começa a agradar o pequeno Enzo. Presenteia-o com um pacote de bombons. E começa a jogar bola com ele. O menino fica encantado.

 

 

 

A mãe de Stella não apreciava muito ficar andando de um lado para outro. Pede para voltar ao camarim. Precisava descansar. Enrico a acompanha e tenta levar o filho junto. Que esperneia e quer ficar. O gentil cavalheiro promete cuidar dele até a volta de Enrico.

 

 

 

Mas a bola nunca tem destino certo. Foi tudo muito rápido. O desconhecido, com um impulso descomunal, atira a bola na direção do pequeno que na ânsia de segurá-la corre em direção à balaustrada do convés. A bola, estocada com tamanha força atinge-o no peito, atirando-o para longe, por cima do peitoril.

 

 

Joga-se, em desespero, o desconhecido ao mar. Atiram-se cordas. E o pequeno Enzo, que tinha apenas três anos de idade, junto com o desconhecido, foram morar para sempre no fundo da escuridão do mar.

 

 

 

O desespero e a dor tomam conta de Enrico e de Stella. Culpam-se, mutuamente, pela vida, que já não era mais vida, de seu pequenino filho. O primeiro filho deles. Nascido em Verona.

 

 

Seguem-se dias e noites de angústia. Stella volta a aspirar o ar fresco das madrugadas andando a sós pelo barco a vapor. Pendura-se na balaustrada do convés, com os olhos fitos nas espumas turbulentas das tempestades que se anunciam em pleno oceano. Quantas vezes pensa em atirar-se para dentro daquelas águas com o pensamento único de encontrar o seu menino. Urros de fera enjaulada são os brados e os uivos que de seu eu saem nestas noites sem fim.

 

 

Enrico tenta amenizar a dor e fala-lhe que logo outro filho virá para confortar-lhe a alma. Aos enjoos da gravidez adiciona-se o do movimento contínuo das turbulentas ondas do mar. E Stella perde forças. Já não luta. Enrico desespera-se. Onde está aquela mulher cheia de viço e beleza, aquela mulher que sempre olhou a vida de frente, aquela mulher que o encantou desde a primeira vez que a viu em uma gôndola nos canais de Veneza?

 

 

 

O médico de bordo pouco ou nada pode fazer. Como fazer voltar para a vida quem da vida já nada mais quer? Stella dizia a todos que tentavam consolá-la que só quem é mãe pode sentir e saber o que é perder um pedaço de seu eu.

 

 

 

Enquanto o barco a vapor singra as turbulentas águas do Atlântico sul, em uma noite de tempestade, Stella sente fortes contrações em seu abdômen. Não, pensou, não pode ser. Não está na hora de meu outro menino nascer. Não está no tempo, não está na hora. Faltam ainda dois meses para a data prevista para o parto.

 

 

Na turbulenta e escura madrugada, enquanto as ondas varrem o navio em todas as direções, enquanto marujos desesperados tentam controlar a direção, o leme, nasce, prematuramente, o filho de Stella e de Enrico. Sem um pulmãozinho maduro que possa levar oxigênio para os demais órgãos vitais, sem um coração potente que possa aguentar estes primeiros minutos de luta, sucumbe nos braços da mãe o pequeno ser que ela ainda, chorando, batiza com o nome do santo de Assisi. Chamou-o de Francesco.

 

 

 

Cesco, como seria chamado pelos seus foi fazer companhia ao seu irmãozinho nas profundezas da solidão do mar. Foi o pensamento que pela mente de Stella passou. Se tivesse ela se jogado nas águas turbulentas, no momento do desespero, não estaria passando por mais esta tragédia agora. Teria sido uma tragédia só…

 

 

 

Stella não sabe do destino que a espera. Que por muitos tropeços ainda passará. Mas que no fim de sua vida será homenageada pela terra que ela abraçou pelo tanto de benemerência, que, em nome destes filhos perdidos no Atlântico, ela fez.

 

 

 

O barco a vapor continuou singrando as águas do Atlântico sul por muitos dias ainda até aportar nas costas do sul do continente americano.

 

 

 

Em Montevidéu Stella e Enrico iniciaram uma nova vida.

 

 

 

*Trecho de um romance em elaboração.

 





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