Nos microcontos o leitor é peça fundamental
A beleza de Santa Catarina não se limita à exuberante natureza e arquitetura, mas abrange, maiormente, a produção cultural, que é, desafortunadamente, um segmento pouco valorizado. Em nosso estado há muita publicação literária de qualidade e, sobretudo, de temática inovadora e de caráter experimental.
No último texto, discorri sobre um livro de Péricles Prade. A resenha desta semana é dedicada ao escritor Adriano Salvi, de Balneário Camboriú, que, em seu livro de estreia, Pá Pum, nos instiga com um gênero literário pouco conhecido e marcadamente contemporâneo, o microconto. Em seu processo criativo, segue a máxima atribuída a Carlos Drummond de Andrade de que “escrever é cortar palavras”.
Como o próprio nome indica, é uma narrativa mínima que, na arte da síntese, não deixa de conter todos os elementos de um conto clássico, isto é, personagem, tempo, narrador, espaço e enredo. Neste último, o mais pertinente é o conflito, ou seja, o ápice da peripécia narrada. Porém, diferente das histórias clássicas, em que geralmente o desfecho está pronto, nos microcontos o leitor é peça fundamental, pois ele faz parte dos itens supramencionados. Sim, é o leitor quem, a partir de seu conhecimento de mundo, preenche as lacunas e infere a significância, numa contínua troca na tríade autor-obra-leitor.
A proposta e o estilo é de (des)leitura da sociedade que nos cerca, refletindo e ironizando sobre temas históricos, políticos, educacionais, sobre as relações humanas, entre outros. O leitor, além de estar preparado para protagonizar o processo semântico, deve se desarmar de expectativas textuais padronizadas e, principalmente, de preconceitos.
O primeiro microconto “Terra à vista/Povo a prazo/Liquidado” mostra que, não obstante a economia das palavras, há material para infinitas discussões e preenchimento do antes e depois da história narrada. Desde os primeiros dias de nossa nação até a atualidade, abrangendo questões coloniais, pós-coloniais e neocoloniais, a nossa economia, nossos costumes, a narrativa histórica ineficaz que percorre os ambientes sociais, o capitalismo feroz, entre tantos outros assuntos importantes para a assimilação de nossas idiossincrasias.
Em outro, denominado “Modernidade líquida”, segue-se “Não beba”, isto é, a partir do termo cunhado pelo filósofo Zygmunt Bauman, que denota a futilidade e celeridade das interações contemporâneas, Adriano Salvi nos conduz à reflexão de que temos a capacidade de rejeitá-la. Após não bebê-la, cabe ao leitor imaginar os benefícios deste ato.
Há também crítica traçada em relação ao consumo de notícias sem o aprofundamento de nenhuma em “Online/Era tanta informação/Que não sabia de nada”.
A quebra de ilusões, com uma pitada de humor negro, se faz presente em “Fase II/Sonhava com a maioridade/A desilusão chegou com as primeiras contas”.
O autor também se rende ao lirismo, sem nunca entregar o enredo completamente, como em “Terror noturno/Morria de medo de saber o que havia debaixo da cama/E vai que não havia nada”, ou seja, a possibilidade é a grande personagem deste texto que, por ser instigante, admite inúmeros desfechos e, assim como grandes obras clássicas, tem a peculiaridade de jamais ser solucionado!
Os demais microcontos que compõem a obra Pá Pum, os quais também circulam, com ilustrações, em redes sociais, têm densidade e sarcasmo análogos aos descritos acima. Fica o convite de leitura. Embrenhe-se no universo labiríntico destas narrativas que, em seu minimalismo, são gigantes!