Os crimes nas caladas da noite (IV)


Márcia fingiu-se interessada. Queria saber tudo. Como seria. O que deveria fazer

 

 

 

Os dias foram passando e Márcia a cada dia mais se inteirava dos acontecimentos que envolviam a vida das moças com quem agora vivia. Em certa tarde, enquanto lavavam suas roupas no tanque atrás da casa passaram-lhe outras novidades mais estarrecedoras ainda.

 

 

 

— Sabe, Scarlet — o nome que adotara ao entrar nesta nova confraria —, muitas vezes nós fomos convocadas para trabalhar naquele palacete que fica logo no começo da avenida, aquele que está em reforma, você sabe qual…

 

 

 

— Você precisava ver as festas chiques que lá rolava. — Emendou Joahana, que, além de exigir um agá em seu nome de guerra fazia questão de que se pronunciasse um i em vez de jota: Iohana. — Só cavalheiros da fina flor. Endinheirados. Políticos importantes da cidade e do estado. Só bebidas importadas para eles. Para nós eram só as garrafas com chá. Pra fingir, sabe. A gente se faz de boba. Já vi colocarem algo diferente nas taças de algumas. Quando dá, a gente chega perto, faz de conta que está meio tonta, tropeça e derruba taça e bebida no chão.

 

 

 

 

— Foi isto que devem ter feito com aquela garota novinha. Chegamos lá naquela noite. Fizemos um pouco de sala e logo a madame, a patroa, sabe, falou que era pra gente ir pra outro lugar. Os poderosos ficaram todos lá se babando em cima da coitadinha que acho que nem sabia o que a esperava. A patroa até apresentou ela pra gente, dizendo que ela estava lá só para atender o bar.

 

 

 

 

— Imagine só Scarlet, a grana que a dona deve ter ganho aquela noite, vendendo carne fresca para um bando de fanfarrões meio bêbados… Já sei como a coisa deve ter se passado. Fizeram fila para estourar a menina. Quem pagasse mais seria o primeiro.

 

 

 

— E nunca mais vimos a mocinha depois daquela noite. A gente imaginou o que aconteceu quando viu a foto dela no jornal dizendo que ela estava desaparecida. E depois daquela noite o palacete fechou para reformas. Então conversamos aqui entre nós e chegamos à conclusão de que aqueles homens foram com tanta sede ao pote que acabaram por tirar a vida da pobre menina….

 

 

 

— Você precisa ver os trajes que a madame traz para nós usarmos nas noites em que manda a gente para as orgias naquele palacete.

 

 

Márcia só ouvia e fingia-se estupefata. Insinuou que agora deveriam estar montando outra casa para aqueles encontros. Mas a conversa foi mais a fundo ainda.

 

 

 

Agora elas estavam sendo convocadas e contratadas para prestarem seus serviços no exterior. Na Europa. Ficariam, enfim, milionárias. Poderiam dar uma vida de paz e sossego às suas famílias que viviam por aquele interiorzão do Brasil. Márcia fingiu-se interessada. Queria saber tudo. Como seria. O que deveria fazer.

 

 

 

Elas estavam, realmente, entusiasmadas com a nova vida que levariam nos países da Europa. Imaginavam que ganhariam milhares de euros em curto espaço de tempo. Ou encontrariam até algum homem de idade, bem abonado com quem poderiam se casar. E formar uma família. Sonhos de quem sempre viveu na desaventurança.

 

 

 

Foi só então que ela conheceu a patroa. E começaram os preparativos para o embarque. Que seria dentro de algumas semanas, em um dos grandes transatlânticos que, diariamente, aportavam ali no porto, diante de seus olhos.

 

 

 

 

O verdadeiro martírio de Márcia estava apenas começando. Muitos preparativos. A patroa contratou até uma senhora especializada em desfiles para ensiná-las a andar elegantemente. Aulas de etiqueta, de conversação e até um básico de francês e italiano…

 

 

 

Em uma reunião com a madame Hadassa — somente agora Márcia ficou sabendo o nome da vendedora de almas e de vidas — ainda na mesma pensão de sempre foram explicados os preparativos finais e ordens imperiosas de sigilo absoluto sobre todos os trâmites.

 

 

 

 

Daquele dia em diante não poderiam mais se comunicar com ninguém. Nem com suas famílias, nem com seus amigos, nem com seus amantes. Márcia gelou. Precisava, de alguma forma, falar com seu colega da redação do jornal.

 

 

 

 

O tempo que passara vendo as pessoas que chegavam com as mais variadas patologias ao Pronto Socorro acendeu uma luz. Ficou a imaginar qual doença aguda poderia simular a fim de que a levassem até lá. Não poderia ser algo que demandasse a uma cirurgia ou internamento mais prolongado. Senão perderia a oportunidade de desvendar, em profundidade, até onde iria esta rede de tráfego de mulheres.

 

 

 

 

Os próprios integrantes da quadrilha tiraram fotografias de todas. Passaportes com nomes falsos foram providenciados. Márcia, que já era Scarlet, via sua imagem encimando o nome de Betzabel. Com um sobrenome francês. Montesquieu. Riu, sozinha a imaginar que agora fazia parte da família de um grande escritor e filósofo francês.

 

 

 

 

Foram transferidas para um local distante. Longe da cidade e longe das praias. Colocaram-nas em um ônibus de excursão. Com janelas totalmente fechadas. Com leões de chácara armados. Chegaram a um velho casarão em meio a um bosque. Ali permaneceriam por mais uns dias. Os mandantes exigiram que as meninas fossem vacinadas e examinadas para evitar que fossem portadoras de doenças infectocontagiosas e ou sexo-transmissíveis,

 

 

 

 

Na primeira noite em que lá pernoitaram Márcia começou a se revirar na cama e a gemer sem parar. Ninguém se mexia e nem falava com ela. Os seguranças ficavam na porta do alojamento. De repente começou a gritar de dor. Foi ao banheiro. Fingiu um vômito que não parava mais. Uma das companheiras acorreu para ajudá-la. Saiu tropeçando e se batendo nas paredes e pelas camas no corredor por onde andava. Chorava e gemia. Dizia não suportar mais a dor de cabeça. Que o mundo em sua frente era uma paisagem de nuvens. Que quando conseguia ver algo, via pela metade. E os vômitos continuavam.

 

 

 

O segurança veio ver que barulho era aquele. Assombrou-se ao ver o estado geral de Márcia. Telefonou ao chefe de seu setor. Que logo chegou. Não poderiam perder sequer uma das meninas. Os dados haviam sido jogados. Levaram-na ao Pronto Socorro. Que, pelos cálculos de Márcia, não distava nem 15 minutos de carro do local para onde o grupo de mulheres havia sido levado.

 

 

O medo de Márcia era de que algum dos funcionários a reconhecesse. Mas com aquele cabeço loiro berrante e as vestes que usava passou incólume pela recepção. Foi examinada e deveria permanecer em observação, tomar a medicação adequada.

 

 

 

Dois leões de chácara, de grande envergadura, tentaram acompanhá-la até dentro da sala de exames e depois na de observação. Foram sumariamente barrados pela equipe médica e de enfermagem.

 

 

Logo na entrada do Pronto Socorro Márcia vislumbrou um colega da redação. Piscou para ele. Já dentro da sala, a sós, com o médico e a enfermeira, pediu um papel e uma caneta.

 

 

 

Era um tempo em que a taquigrafia fazia parte do armamentário jornalístico. Sussurrou no ouvido dos profissionais de saúde dizendo que ali se encontrava em missão jornalística. E que entregassem aquele bilhete para o colega da redação que lá se encontrava.

 

 

Ficou no pronto socorro por umas duas horas. Fizeram de conta que lhe ministraram a medicação adequada. Neste ínterim o pessoal do jornal conseguira deixar com ela um rastreador com um recado de que avisariam a polícia. A intenção era pegar, de surpresa, o maior flagrante de tráfego de mulheres, até então detectado.

 

 

 

Márcia teve alta melhorada do Pronto Socorro. Levava nas mãos uma receita para prevenir novas crises de enxaqueca. Seus acompanhantes prometeram cuidar bem dela, porque era uma irmã muito querida…

 

 

Aguardaram o prazo regulamentar para que as vacinas fizessem o efeito desejado e enfiar organismos abaixo antibióticos que debelassem as infecções sexo transmissíveis porventura ainda remanescentes.

 

 

E então, solenemente, as garotas tornaram a entrar no ônibus de turismo que as levou ao porto. Estavam felizes e já contavam os dólares que faturariam com os magnatas que estariam naquele transatlântico de luxo. Logo nele entraram. Pela escadaria rente ao cais, no estibordo do navio. Passaram por dentro dele, enfileiradas, admirando-se com o luxo que lá dentro vislumbraram. Andaram, andaram, subiram e desceram escadarias sem fim até a caminhada findar diante das escadas de bombordo. E um transbordo para um cargueiro pequeno e de baixo calado foram obrigadas a fazer.

 

 

 

 

Além do rastreador Márcia levava consigo uma minicâmara fotográfica, igual ao que os espiões usam. Centenas de imagens, em muitos rolos de filmes, tanto das pessoas, como dos locais por onde havia passado estavam registradas.

 

 

 

Zarparam, de imediato, do porto, sem sequer esperar que a inusitada comitiva se instalasse em seus camarins, em pleno porão. Os planos de Márcia e de seus amigos do jornal foram por água abaixo. Seu maiô especial de natação estava devidamente escondido, juntamente com a microcâmara, em um fundo falso de sua mochila.

 

 

 

O cargueiro já estava na saída da barra, mal avistava os prédios da orla praiana. Anoitecia. Arrancou suas vestes Ficou apenas de calcinha e sutiã. Do convés atirou-se ao mar. Mergulhou fundo nas águas revoltas. Conseguiu submergir. O barco já ia longe.

 

 

 

Os seguranças a bordo imaginavam que era apenas uma moça desesperada que se suicidara.

 

 

No ponto combinado, na ponta da praia, seus amigos a esperavam. Fortes braçadas, com impulsos vibrantes, exausta, quase sem fôlego, lá ela chegou. Com os microfilmes em um saquinho impermeável, de plástico, pendurado em seu pescoço. Como se fora a medalha de ouro de um campeonato de travessia da barra.

 

 

 

Apesar de estarem com as provas em mãos, os trâmites legais para que a Polícia Marítima abordasse o cargueiro tardaram a chegar. Quando o ágil barco das autoridades policiais avistou a embarcação, que levava as mulheres, já se encontrava em águas internacionais.

 

 

 

Os contraventores em terra foram pegos pela justiça. A rede era imensa. E intensa. Madame Hadassa era apenas a ponta do iceberg.

 

 

 

Sabe-se que o tráfego de mulheres, que servem de escravas sexuais, em todo o mundo, persiste estufando de dólares, euros, ienes e outras moedas muito valorizadas, os cofres de milhares de “cidadãos de bem”.

 

 

 





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