Os crimes das caladas da noite (III)


Restava à pobre mulher ir com eles até o necrotério, anexo ao Pronto Socorro e fazer o reconhecimento do corpo

 

Planos e mais planos começaram a ruminar na cabeça de Márcia. De imediato precisaria conversar com o pescador noturno que pegava caranguejos em um dos canais que deságuam no mar. Procurar a mãe da menina e, com calma, tirar algumas informações.

 

 

 

 

Passou suas ideias para o chefe de redação. Que arregalou os olhos. O diretor do jornal, arqueou as sobrancelhas, largou na mesa os papéis que estava lendo, colocou os óculos em uma das mãos, ficou rodando a caneta na outra, encostou-se no espaldar da cadeira rotatória, pigarreou solenemente, mediu Márcia de alto a baixo, meneou a cabeça e outros gestos mais enquanto procurava palavras em sua mente, palavras que conseguissem convencer a jovem jornalista a mudar de planos. Não encontrou. Apenas falou que não aprovava.

 

 

Outro repórter, amigo de Márcia, prontificou-se a acompanhá-la. Primeiro, a parte fácil. Esperaram a noite chegar e dirigiram-se ao canal em busca do pescador. Não foi difícil encontrá-lo. Mesmo na escuridão perceberam as vestimentas surradas, rasgadas, em um homem ainda jovem, mas de face envelhecida e de uma palidez perceptível, mesmo à fraca luz de uma lâmpada, não muito distante. Estranharam o fato de alguém procurar caranguejos em tão pútrida e nauseabunda água.

 

 

O homem, a princípio, espantou-se com a presença deles ali. Com máquina fotográfica a tiracolo. Tentou esquivar-se. Mas cedeu à oferta de uma boa refeição, em um boteco na esquina.

 

 

 

Dissera para a polícia que era um pescador, para que não o levassem para o xilindró. O que ali ele pescava mesmo eram moedas, anéis, relógios e outros objetos perdidos que a maré leva e traz. Nem sempre encontrava alguma coisa. Mas o suficiente para conseguir alguns pães e uns goles de aguardente. Márcia e seu amigo André entreolharam-se. Era um mendigo perdido entre tantos outros nas noites da beira-mar.

 

 

 

Prometeram levá-lo para dormir em uma pensão. Não aceitou ser fotografado. Falou que se chamava João. E então lhes contou, na verdade, o que vira na noite anterior.

 

 

 

—Estava lá embaixo, no canal, quando ouvi um carro chegando, devagarinho até. Parou quase no alto do ponto onde eu me encontrava. Era hora de maré cheia. Ouvi, primeiro, o barulho das portas do carro se abrindo. Depois a do porta-malas. E, de súbito, aquele volume, em lona preta, caindo nas águas. Aí eu me levantei e me encostei rente ao paredão. Consegui ver que era um táxi. Anotei na cabeça o número da placa.

 

 

 

Percebeu que dentro do pacote havia alguém. Que gemia. Conseguiu reter o volumoso fardo com suas pernas e o encostou nas pedras que ficavam rente ao paredão. Saiu, às pressas, em busca do telefone público da esquina para avisar a polícia. Mesmo tendo encostado o corpo sobre as pedras as águas já o haviam removido até quase perto do mar.

 

 

 

Acabou de sorver o último gole de cachaça do copo. Limpou com um naco de pão os restos de comida do prato e sumiu na noite. Parece que o mendigo, que dissera chamar-se João, sabia muito mais. Porque saiu de fininho no instante em que percebeu dois corpulentos homens entrando no local.

 

 

Para aquela noite Márcia já tinha mais um pedaço da história. Que o jornal publicou no dia seguinte. Após o almoço, quando chegou na redação contaram-lhe a trágica notícia. Acharam o corpo de um mendigo, perfurado com cinco balas, na praia, junto ao mar. Arregalou os olhos ao ver a foto. Reconheceu João.

 

 

Naquele dia iria procurar o taxista que levara o corpo da moça e os bandidos até o canal, junto ao mar. Conseguiu encontrar um homem apavorado. Que não sabia do que se tratava a encomenda que colocaram no porta-malas de seu carro.

 

 

 

Márcia a esta hora já estava acompanhada, não só de seu amigo repórter André, mas também do jovem policial que se desesperava com as tragédias que ajudava a levar até o Pronto Socorro. Não precisaram insistir muito para o taxista lhes dar o endereço do local onde buscara a tenebrosa encomenda e os passageiros.

 

 

Márcia precisava agora procurar a mãe da menina assassinada e dar-lhe a triste notícia. A casa ficava na encosta do morro do Jabaquara. Tiveram de deixar o carro em seu sopé e subir. Dona Otávia fritava, em seu pequeno fogão a gás, de quatro bocas, as coxinhas e os pastéis que venderia depois em uma banca, perto da praia. Era o seu ganha-pão. Tinha a porta da cozinha aberta. Os recém chegados na escadinha, do lado de fora. Olhou para eles. E logo entendeu. Não seriam notícias boas.

 

 

 

Convidou-os a entrar. Serviu-lhes o forte cafezinho, de praxe. Contou-lhes que sua filha, Heleninha, a ajudava a fazer e a vender os salgadinhos.

 

 

— Há alguns meses chegou uma senhora muito bem trajada, em um carro muito chique e comprou todas as bandejas de nossos salgadinhos. Não tirava os olhos de minha Heleninha. Tornava a voltar. Fazia encomendas de grandes quantidades.

 

 

Um dia a tal senhora chique fala para dona Otávia que a menina levava jeito para recepcionista em um bar muito glamoroso, frequentado por pessoas da alta sociedade, não só dali da cidade, mas da capital também. O salário altamente compensador. Dona Otávia nem precisaria se preocupar em fazer e vender salgadinhos. Ficaram de pensar. A mulher vinha, diariamente, até a banca da praia. Até convencê-las. Nos primeiros dias ia buscar a menina logo no entardecer e antes das dez horas da noite já a entregava em casa. E assim estabeleceu-se um laço mútuo de confiança. Até a noite em que a sua Heleninha não mais regressou.

 

 

Telefonou para o número que a senhora chique lhe dera. Telefone mudo. Foi até o endereço que a mulher lhe dera. Apenas um terreno baldio. Procurou a polícia. Que lhe garantiu providências imediatas. O jovem policial ao lado, ouvindo tudo aquilo, começou a sentir-se mal.

 

 

 

Resolvera, então, levar a foto da filha para a redação do jornal. Para que a publicassem. Márcia, em algumas palavras falou-lhe da moça que chegara na emergência e que era, sim, a filha dela. Restava à pobre mulher ir com eles até o necrotério, anexo ao Pronto Socorro e fazer o reconhecimento do corpo.

 

 

 

Pelas fotos que Dona Otávia lhes mostrou, via-se que Heleninha era uma menina muito linda. Olhos verdes, longos cabelos negros. Sorriso encantador. Rosto moldado pelas deusas da beleza. Muito alta já para os seus quinze anos. E um corpo escultural.

 

 

 

Ajudaram a pobre mulher nos trâmites legais. Prometeram-lhe que descobririam e entregariam ao Ministério Público os assassinos de sua linda filha.

 

 

 

Exaustos retornaram à redação. Haviam deixado o policial Hermínio em sua casa. Ele estaria de prontidão naquela noite e precisava descansar. Márcia mal acabara de sentar-se e começar a escrever as primeiras palavras de sua matéria para o dia seguinte, o chefe de redação mostra-lhe fotos, com alguns rabiscos escritos, que acabavam de receber da polícia. O taxista havia sido assassinado e seu carro fora encontrado boiando nas águas do mar, nas cercanias do porto.

 

 

Para que os planos de Márcia alcançassem os resultados almejados ela jamais poderia apresentar-se como jornalista naquele fatídico endereço fornecido pelo taxista.

 

 

 

 

Procurou entre suas roupas e as de suas amigas, peças de tamanho menor que o seu.

 

 

 

Mudou o cabelo. Transformou-se em loira berrante. Maquiou-se com tons exagerados. E assim procurou as lojas que ficavam nas ruas adjacentes ao cais do porto para a aquisição de um novo e adequado guarda-roupa para as funções que começaria a representar.

 

 

Imaginou que, no futuro, talvez, precisaria usar seus dotes de nadadora. Que adquirira treinando no rio de sua infância, em sua terra natal. Matriculou-se no curso de natação de um grande clube de regatas que fica à beira-mar.

 

 

Antes desta transformação falou para a senhora da casa onde morava, Dona Marina, que iria ausentar-se por uns tempos. Tinha que fazer uns serviços para o jornal em outra cidade. Mas que suas coisas poderiam ficar ali guardadas.

 

 

 

Acostumada a andar de tênis teve de treinar muito para se equilibrar sobre sandálias de salto agulha. Com um corpete vermelho apertado e uma calça branca de lycra, colada ao corpo, balançando uma bolsa, começou a desfilar por uma das ruas que ficavam perto do endereço que o taxista lhe fornecera.

 

 

 

Não tardou para uma mulher vir lhe chamar a atenção. Que aquele território tinha dono. Ou melhor, dona. E que ela teria que entregar toda a féria do dia à chefe do pedaço. E mais outras companheiras de vida fácil, dela queriam saber. E instruções acima de instruções. Que só poderia frequentar os bares indicador pela dona. Que havia uma pensão onde todas moravam. E que deveria pagar para conseguir um chuveiro para tomar banho e um catre imundo onde descansar o corpo.

 

 

Carros circulavam por ali em tempo integral. Havia um, em especial, no qual ela entrava em todas as noites. Era o de seu colega repórter que deixava com ela o dinheiro destinado aos cofres da dona chique que comandava o local. Márcia entregava-lhe folhas arrancadas de seu caderninho, onde anotava detalhes do que via e ouvia.

 

 

Passou por muitos percalços. Havia noites em que deveria fazer ponto em um dos inúmeros bares que circundavam o porto. Para fugir de estranhos fregueses muitas janelas dos fundos teve que pular e sair correndo com suas sandálias de salto agulha nas mãos.

 

 

 

 

Em um desses dias não encontrou sua carona amiga, seu colega André. Teve que percorrer quilômetros a pé até a pensão onde morava com suas colegas de trabalho. O sol já estava alto. Não trazia com ela o dinheiro que deveria entregar para a coletora que ficava à porta. Ficou devendo a féria do dia… Deitou-se em seu catre e mais cochilou que dormiu. A conversa entre as companheiras era em meio a cochichos e sussurros. Uma história macabra assombrou seus ouvidos.

 

 

—Vocês podem não acreditar! —Exclamou Brigitte. — Aquele grande palacete que fica lá na ponta da avenida está em obras. Dizem que vão restaurar. Mas é onda. É que lá morreu alguém e querem esconder o crime. Estão é limpando tudo para encobrir as manchas de sangue. Quem me falou foi o Zé do Sorvete. Não me contou como ficou sabendo. Parece que um dos homens que trabalha lá na obra que disse pra ele qualquer coisa. Que tá dando muito trabalho porque precisa rapar muito pra tirar a sujeira. Uma sujeira estranha… espalhada pelo assoalho, até pelas paredes.

 

 

 

 

—Eu lembro que a casa tá fechada desde o dia em que trouxeram pra cá aquela garota novinha que era muito linda…e que desde então não apareceu mais por aqui…

 

 

 

O sono e o cansaço sumiram de vez. Márcia fingiu acordar e perguntas mil foi fazendo para se inteirar das coisas. O novelo começou a ser desenrolado. Nós começaram a ser desatados. Estava perto de saber o que teria acontecido com a pobre garota, filha de dona Otávia. E de muitas coisas mais.

 

 

Muito mais fatos as moças da pensão foram contando, aos poucos. Mas eram tantas as novidades e tantos os percalços que aguardavam por Márcia que só na próxima coluna eu terminarei de contar.





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