Os crimes das caladas da noite


Ela queria muito mais do que apenas uma vida a fazer aquele eterno serviço

 

Quando Márcia foi aprovada no vestibular do Curso de Jornalismo, na Universidade da capital, mil sonhos em sua cabeça pululavam. Imaginava-se já informando ao mundo as notícias do dia no maior e mais famoso canal de televisão.

 

 

Sua família morava em um pequeno sítio, em distante local, no meio das serras entre o mar e o planalto. Não longe da vila onde ela, pequena ainda, deixava alucinadas as professoras do grupo escolar onde estudara. Tudo queria saber. Sobre tudo perguntava. E escrevia em seus cadernos tudo o que encontrava pelos caminhos por onde andava.

 

 

Sua vida no interior era simples. Nada faltava. Tinha muitos irmãos. Todos ajudavam tanto nas lides do sítio como na venda dos produtos que, da lavoura e da criação de suínos e de aves, semanalmente, levavam para a feira da vila.

 

 

Mas ela queria muito mais do que apenas uma vida a fazer aquele eterno serviço. E casar-se depois com algum aldeão ou sitiante. Criar filhos que continuariam a vender ovos e legumes nas feiras das vilas vizinhas.

 

 

 

Sua ânsia e sua busca pelo saber não poderia ter passado despercebido pelas professoras que, diariamente, vinham da capital para lecionar no grupo escolar onde Márcia estudava. Emprestavam-lhe livros e mais livros, que ela, em poucos dias, devorava. E sobre eles escrevia incríveis comentários.

 

 

 

Em seus temas escolares esparramava os mais diferentes vocábulos para contar fatos corriqueiros da vida simples das pessoas. Uma ocasião ela presenciou um acidente entre um ônibus e um carro de passeio que transitava, em alta velocidade, pela única e longa rua de sua vila. Descreveu-o com detalhes. Sua professora de língua portuguesa percebeu nela o tino jornalístico. Estimulou-a a seguir esta carreira.

 

 

 

E foi assim que Márcia chegou na cidade grande. Foi morar na mesma pensão onde morava a sua mestra. As aulas de seu curso realizavam-se no período noturno. Para pagar seu pouso e a sua alimentação trabalhava o dia inteiro. Ajudava a dona na cozinha. Servia as mesas dos hóspedes. Lavava louças e panelas, roupas e calçadas. Mas vivia feliz, porque com seu trabalho conseguia ficar na cidade grande e estudar.

 

 

 

Não demorou muito tempo para seu sonho ruir. Já estava habituada à rotina de seu serviço. A dona da pensão era uma pessoa generosa. Já bem andada nos anos, como diziam os demais hóspedes. Mas de uma vitalidade de fazer inveja. Certa manhã não apareceu na cozinha para dar suas primeiras ordens sobre o café da manhã. Ela morava, sozinha, em uma pequena e bem planejada casa nos fundos do mesmo terreno onde estava erguido o antigo casarão, que agora servia de pensão. Era viúva e os filhos espalharam-se.

 

 

 

Cada qual com sua profissão, sua família e seus afazeres pouco ali chegavam. Nem sabiam como andavam os negócios de sua mama. Só sabiam que tudo corria bem. Até aquela manhã. Quando da cama ela não mais saiu. E de onde foi, diretamente, para o serviço de verificação de óbitos. O médico legista deu como causa mortis um extenso e fulminante infarto agudo do coração.

 

 

 

Os filhos não quiseram continuar com a pensão. Venderam o velho casarão para uma grande imobiliária. Ali seria construído um arranha céu.

 

 

 

Na véspera desta tragédia, Márcia precisou ir ao Posto de Saúde, não muito distante. Uma jovem senhora que morava na pensão trabalhava o dia inteiro em um escritório em um dos grandes edifícios do centro da capital. Seu filho, de uns 7 anos, quando não estava em horário de aula, ficava atormentando a vida dos que lá residiam. Não por maldade. Coisas próprias da idade de um garoto. Mas naquele dia o menino não queria nada. Nem comer.

 

 

 

A choramingar ficava pelos cantos. Dona Nena, a dona da pensão logo percebeu que o garoto estava febril. Pediu que Márcia levasse o moleque para uma consulta médica.
O menino foi atendido por uma sorridente pediatra. Que o examinou. Procurou na prateleira, ao lado, a medicação que precisaria ser ministrada em casa. Enquanto a Enfermeira aplicava uma injeção, a médica queria saber o que Márcia fazia. Se era pajem do garoto. Perguntou também se não sabia de alguém que pudesse ajudá-la em sua casa. Ela tinha três filhos, já adolescentes. Morava em uma casa muito grande. Precisava de uma pessoa que a ajudasse nos afazeres domésticos.

 

 

 

Com a morte de dona Nena e o desmantelamento da pensão, Márcia nem pensou duas vezes. Logo após o enterro foi até o postinho. A médica arregalou os olhos quando a viu. Já pensou que algo de pior tivesse acontecido com o garoto que atendera na véspera.
—Não dona doutora, o moleque está bem! É que a senhora ontem me perguntou se eu sabia de alguma senhora que pudesse lhe ajudar em sua casa…. Serve eu?

 

 

 

A pediatra mediu Márcia de alto a baixo. Avaliou sua pouca idade. Balançou a cabeça e já ia dizendo que precisava de alguém com mais idade, alguém acostumada a limpar uma casa grande… Nem completou o pensamento.

 

 

 

—Doutora eu sou do interior. Estou fazendo o curso de jornalismo na Faculdade. Moro, quer dizer morava e trabalhava na pensão. Sabe, onde mora também o moleque que eu trouxe ontem, aqui. Mas a dona morreu e a pensão vai se acabar. E eu não tenho para onde ir. Mas eu faço de tudo. A senhora pode crer. Cozinho, lavo, passo, arrumo a casa. A senhora não precisa se preocupar. Se a senhora tiver um canto para eu poder dormir e estudar nem precisa me pagar nada.

 

 

 

Ambas, com seus olhos negros, ficaram a se fitar. Léa, a médica pediatra, não sabia o que dizer. Ter em sua casa uma serviçal que era uma estudante universitária… Isto jamais teria passado por sua cabeça.

 

 

 

Márcia olhava para a médica. A angústia em seu coração. Se não fosse aceita ali para onde iria quando começassem a retirar todos os móveis da pensão, quando começassem a demolir o prédio? Não conhecia mais ninguém na capital. Os demais hóspedes já estavam de mudança para outros pousos, outras pensões. A professora tinha um namorado e estava aprontando seus pertences para com ele ir morar. Restava-lhe deixar seu sonho engavetado, retornar para a sua casa, para o sítio, cuidar das galinhas e dos porcos, vender ovos e banha na vila….

 

 

 

—Doutora, eu lhe ajudo, como eu vinha fazendo na pensão, até nos domingos. Só queria um final de semana livre por mês para ver minha família lá nos fundões da serra…
Léa não se movia. Sempre deu a entender ao mundo que seu coração era de pedra. Mais que ver, sentiu as lágrimas a escorrer pelas faces de Márcia. Quase colocou suas mãos nos ombros da garota. Conteve o gesto. Engolindo suas emoções, falou quase secamente:

 

 

 

—Volte para a sua pensão. Arrume suas coisas. Dê-me o endereço. Quando eu terminar meu expediente aqui passarei por lá e a levarei comigo. Por hoje você poderá dormir em nossa casa. Vou apresentá-la a meu marido, que é militar e muito severo e a meus adolescentes filhos. Se acharem que pode ficar lá em casa e gostarem de você, você estará garantida até completar a faculdade e arranjar um emprego. Ou… casar…
A casa era, realmente, muito grande. Além das salas, biblioteca, cozinha e seus acessórios no piso térreo, havia quatro quartos e três banheiros no piso superior, além de um mezanino.

 

 

 

Em uma construção anexa, nos fundos, também de dois pavimentos, ficava a lavanderia e um depósito na parte baixa e em cima um verdadeiro apartamento com uma pequena sala, uma mini cozinha e um quarto. Muito além do que Márcia sonhara. Com entrada independente. Não incomodaria a família à noite, quando regressasse das aulas na Universidade.

 

 

Os anos na Faculdade passaram mais rápido do que Márcia poderia sequer imaginar. Embora o serviço que fazia para a família lhe tomasse muitas horas do dia, sempre arranjava tempo para estudar, para ir ao cinema, para assistir aos programas de televisão, para inteirar-se da vida prática do jornalismo.

 

 

A médica e seu marido, a esta altura já no posto de Major do Exército, compareceram com os três filhos, que na faculdade já estavam também, em sua formatura.

 

 

Parece que quanto mais encargos as pessoas têm em suas cabeças, melhor conseguem realizar seus compromissos. Márcia recebeu um prêmio por sua dedicação ao estudo, por sua perseverança, por seu desempenho na parte prática. E, além do prêmio, um emprego em um grande jornal na cidade praiana que do alto do velho sítio dos seus, na distância, vislumbrava.

 

 

Foi então que os conhecimentos adquiridos, aliados àquela sede de aventuras que a acompanhava desde a infância, colocaram-na em evidência nas lides do jornalismo investigativo.

 

 

Aqui começam as reais aventuras de Márcia em busca de soluções para problemas cruciais que atingem as pessoas simples da vida.

 

 

 

 

Na próxima semana eu conto mais um pedaço.





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