O poeta solitário do rochedo junto ao mar


Sempre após o crepúsculo do entardecer aterrissávamos em seu tugúrio

 

 

Ela tecia poemas em tudo que falava. Contava histórias que teria vivido, mescladas a romances que lera. Viajara por imaginários mundos de onde trazia as mais líricas palavras para emoldurar, em dourado, as tristes passagens de uma vida que fingia não viver.

 

 

 

Nunca se soube se as passagens que contava seriam passagens que viveu, passagens que apenas vislumbrou ou passagens das quais participou. Era etérea e narrava romances de escritores famosos para deliciados ouvintes que não tinham tempo de ler ou que em livros não se aprofundavam.

 

 

 

 

Passava madrugadas insones, debruçada no peitoril da janela de seu quarto, que a neblina umedecera, a inquirir da noite o que não via. Passava madrugadas insones debruçada sobre a tosca mesinha de sua sala, a escrever poemas que depois atirava pelas paredes. Passava madrugadas insones enchendo um cinzeiro de restos de cigarros mal fumados e mal absorvidos. Passeava incólume sobre um tapete de cinzas que espalhava pelo chão.

 

 

 

Sempre após o crepúsculo do entardecer aterrissávamos em seu tugúrio, no afã de ouvir seus poemas, suas poesias, as histórias que tinha para contar. Sempre uma fumegante xícara de café estava à nossa espera. Ou uma cuia de chimarrão a correr de mão em mão.

 

 

 

 

Um dia em que lá cheguei ela estava só. Muito séria com o eterno pequeno cilindro branco entre os dedos, escondida atrás de uma azulada cortina de fumaça que a envolvia. Quase lágrimas em seus olhos eu percebi. Ela trazia dentro dela a dor de toda a humanidade. Não era apenas uma triste história o que tinha para contar. Serviu-me a costumeira taça de café quentinho. Sentou-se na poltrona à minha frente. Encostou os cotovelos sobre os joelhos e falou-me de uma tragédia que ocorrera já há algum tempo. Ela tinha aquilo encravado dentro dela. Uma história que ocorrera com um grande amigo. Poeta, também. Que morava em uma cabana no alto de um penhasco e que dormia ao som das ondas do mar.

 

 

 

 

Em forma de poema ela foi falando. Da paixão deste amigo por uma mulher que lá pelas praias também morava. Tentou ler a carta que o amigo-poeta lhe escrevera. Tentou… Entregou-me o amassado papel por onde seus olhos tantas lágrimas já tinham derramado.

 

 

 

 

“Amiga,

 

Um dia eu te falei de um amor. De um amor impossível. Quando, há quase um ano, eu te escrevi contando o que deveria conter o quase-tudo de mim, muita lama depositada no fundo de meu lago ainda faltou ser revolvida. Talvez a mais trágica, a de meus pesadelos, seja esta que tento escrever agora.

 

 

 

 

Colocando no papel e sabendo que lerás, que entenderás e que, o mais importante, para mim, compreenderás, enfim, as minhas nuances, os meus mutismos, os meus desesperos entre quatro paredes. É como se eu estivesse tentando, agora, somente agora, por para fora os infernos de meu eu e saber que, depois, uma suave brisa soprará. Não é uma análise fria. É tão somente o extravasar, abrir comportas e esperar por uma libertação desta minha angustiada mente.

 

 

 

 

Seu nome era Lúcia. E eu a amava. Lembro-me da última vez em que estivemos juntos… era verão, o verão mais quente dos últimos anos.

 

 

 

 

E Lúcia também me amava. E, de mãos dadas, naquela tarde magnífica, contemplávamos o mar… e nossos pés, ali, assim cobertos de areia, roçando-se leves, era algo intensamente lírico, puro, íntimo.

 

 

 

E Lúcia tão quieta, tão quieta, tão minha! Falávamos tão pouco! Para que palavras quando se estabelece tamanha sintonia apenas com a proximidade?

 

 

 

 

Mas Lúcia estava quieta demais! E, Deus, aquilo foi como uma espécie de aviso! Por que não o entendemos? Ou teria ela entendido? Não sei.

 

 

 

 

Eu somente sei que, naquelas horas todas, estivemos mais unidos que nunca, no silêncio que espalhamos para nos amarmos em paz.

 

 

 

E já era noite, quando percorremos, ainda de mãos dadas, em silêncio, os poucos passos que nos separavam do carro e voltamos para casa. Para a casa dela.

 

 

 

 

E ele estava esperando por nós. E, de repente, olhando para aquele homem transtornado que tentava arrastá-la para longe de mim, senti imenso ódio; e desprezo; e medo, principalmente medo.

 

 

 

Agarrou-a pelos braços e a arrastou para dentro.

 

 

 

E a matou!

 

 

 

Os estampidos soaram na noite e repercutiram nas encostas além.

 

 

 

E eu passei a viver como se todas as horas, de todos os dias, fossem um longo e terrível pesadelo.

 

 

Lúcia! Meiga, linda, a suavidade que se fez corpórea e que um dia me pertenceu!

 

 

 

Lúcia dos poemas inacabados, carícias leves, mágica voz!

 

 

 

 

Lembro-a agora, passados tantos anos! Talvez pela proximidade do verão que me levará uma vez mais ao ato reflexo de enterrar os pés na areia, fechar os olhos, ouvir o mar… e sentir seus pés roçando os meus, morosamente.

 

 

 

Talvez porque hoje é o dia do aniversário dela. Talvez porque seu espírito esteja comigo, agora, num assomo de saudade.

 

 

 

É. Lúcia morreu. E foi embora.

 

 

 

Que dizer de mim, que já morri de tantas mortes e ainda estou aqui?

 

 

 

 

Perdoa-me por somente agora ter coragem de te contar esta tragédia que só se atenua quando fico, no alto do penhasco a olhar as ondas a bater nos rochedos lá embaixo.

                                                           Eu” (*)

 

 

 

 

Não conheci este amigo-poeta que morava em uma cabana, nas encostas perdidas que o mar beijava. Ela disse-me que um dia eu iria conhecê-lo. Mas ela se foi sem me deixar o mapa daquele lugar encantado.

 

 

 

Fiquei, por longo tempo, a imaginar a cena da tragédia. Sem nada dizer. Fiquei a imaginar o poeta a voar com seu carro em alta velocidade quase jogando-o para dentro do mar revolto. Não, ele não tinha carro. O carro era dela. Da mulher que ele amava. Saiu a correr, imaginando-se um covarde, pela noite encharcada em luar, sem rumo, sem foco, sem vida dentre de si.

 

 

 

Nem eu, nem ninguém jamais soube ou conheceu o anônimo, solitário e eremita poeta das encostas perdidas.

 

 

 

 

Minha amiga foi morar em outras galáxias. Deixou centenas de páginas impregnadas dos mais belos poemas. Nada mais deste solitário amigo-poeta foi encontrado entre os seus guardados. Muitos esboços de amores proibidos, de amores perdidos, de lágrimas sofridas locupletavam velhas pastas que ela me entregou, para que eu as guardasse.

 

 

 

 

Então aquela carta era parte de um conto que vicejava em sua mente. Um conto em forma de poema, entre centenas de tantos que a sua sensibilidade criava. E que nunca puderam ser publicados.

 

 

 

 

Eram tempos difíceis. Em que poemas eram jogados nas sarjetas.

 

 

 

Uma trágica história condensada em uma página de papel.

 

 

 

O poeta solitário dos rochedos da beira-mar.

 

 

 

 

 

*Texto entre aspas e em itálico são de autoria de Isis Maria Baukat

 





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