O Menino-Bandido


Menino com lagartixas (1924), de Lasar Segall/Reprodução da internet

Adair Dittrich conta a comovente história de uma criança cooptada pelo crime                                          

Era um tempo em que trabalhávamos com pouca ou quase nenhuma remuneração. Seria, talvez, creio eu, porque devíamos gostar muito do que fazíamos. Éramos jovens, saudáveis e tínhamos na mente a audácia e a gana de sempre vencer. Em nosso caso, vencer os rivais, os inimigos. Rivais e inimigos que nem sempre nos davam o prazer do sucesso. Rivais e inimigos. Com um denominador comum. A Doença.

 

 

Era um tempo em que não havia SUS. Um tempo em que poucos eram beneficiários dos antigos institutos de previdência que cobririam alguns procedimentos médicos.

 

 

Era um tempo em que faqueados e baleados apareciam, num repente, à nossa frente, para o necessário atendimento emergencial, o necessário atendimento que lhes salvasse a vida, sem que se soubesse quem iria pagar a conta.

 

 

Nós, os médicos, entrávamos com nosso serviço. Com nossa ciência e nossa arte, com nossas noites indormidas, nosso conhecimento, nossas habilidades. O Hospital entrava com os equipamentos, os materiais e os medicamentos, os instrumentos cirúrgicos, as refeições, os leitos, os cuidados de enfermagem, os cuidados de higiene…

 

 

E nada disto bailava em nossas cabeças, nada disto levávamos em conta. a não ser a satisfação de haver salvado a vida de alguém, de haver amenizado o choro e a angústia de muitos.

 

 

Foi assim, também, quando o menino-bandido em nosso Hospital foi atendido!

 

 

Ah! Um menino-bandido! Uma quase criança ainda. Um quase imberbe menino.

 

 

Inopinadamente ele chega ao nosso encontro. Inconsciente. Deitado em uma maca. Que vinha sendo empurrada, na maior velocidade possível que as suas rodas e as pernas dos que a conduziam permitissem.

 

 

Findara a primeira cirurgia naquela manhã de primavera. Enquanto aguardávamos que a sala fosse preparada para um novo procedimento eletivo, tomávamos um cafezinho num compartimento contíguo.

 

 

Vozes aflitas ao longe. Gritos. Abrem-se as amplas portas duplas da entrada do centro cirúrgico para que por ela fosse possível passar a maca movida a jato pela enfermagem.

 

 

Paciente em choque. Relato curto e grosso. Um baleado. Vestes ensanguentadas. Voamos para a sala de cirurgia. Corrida urgente atrás de sangue, enquanto um soro fisiológico para dentro de seu corpo já era injetado sob pressão, na mais alta velocidade que os tubos e as veias suportassem.

 

 

Enquanto procediam-se os preparativos algumas chapas de Raios-X foram sendo batidas em nosso pequeno, velho e quase baqueado aparelho portátil.

 

 

O procedimento anestésico, em princípio, resumiu-se a uma leve sedação, entubar e ventilar o paciente a fim de mantê-lo vivo. E algo para relaxar as teimosas alças intestinais a fim de que o cirurgião pudesse trabalhar com mais eficiência.

 

 

Enquanto eu lutava com as veias, a medicação e os líquidos a serem injetados e transfundidos, meu amigo Wilson Erzinger debruçava-se, com a meticulosidade que lhe é característica, sobre o abdômen do paciente, após ampla incisão nele efetuada. Foi o instante de abrir a parede e eis que, em borbotões, jorra o sangue que, no interior do abdômen, acumulava-se de minuto a minuto.

 

 

Uma atrás de outra, as pinças hemostáticas iam sendo colocadas para deter o avanço da catarata vermelha que só fazia aumentar.

 

 

O silêncio era sepulcral. Só se ouvia o tinir do metal dos instrumentos cirúrgicos e o ruído do respirador automático que insuflava a mistura de ar e oxigênio para dentro dos pulmões do garoto ali estendido.

 

 

Veias já haviam sido dissecadas em seus braços para que o plasma e o soro, e logo o indispensável sangue, corressem com a velocidade do som, se possível fosse, para que, do choque, o quase imberbe menino, ali deitado, retornasse aos seus sinais vitais normais.

 

 

Compressas e mais compressas de gaze, empapadas em sangue e soro fisiológico, enchiam baldes que se revezavam ao lado da mesa cirúrgica.

 

 

E o Wilson, auxiliado por Wagner Pelagio, enquanto pinçava e fechava os vasos sangrantes, ia em busca do local de entrada da bala. Porque o estrago que o seu trajeto causara findava logo abaixo do esterno, por onde ela saíra.

 

 

Fezes misturavam-se à lama vermelha do sangue coagulado que se acumulava por toda a cavidade abdominal.

 

 

Após suturar a parede gástrica, as alças intestinais delgadas e as do cólon, a insidiosa busca pelo pertuito de entrada do projétil continuava por todo o abdômen inferior e pelve. No fundo, bem no fundo, ao lado das vértebras sacras, ele foi encontrado. Imprescindível se fazia uma colostomia.

 

 

Parecia, enfim, que a charada estava decifrada. A bala entrara pelas costas, ao lado do sacro e saíra do corpo do jovem na parte anterior do corpo, já abaixo do osso esternal.

 

 

Depois de horas de angústia de alguns e do árduo trabalho de toda a equipe ligada ao centro cirúrgico, o menino acorda, sobressaltado, sem noção alguma de onde se encontrava.

 

 

Foi então que os responsáveis pela polícia civil nos relatam a história do garoto. Do garoto e de seu bando. Do menino-bandido que andava causando terror pela cidade e em seu entorno. Que era chefe de uma gangue de menores. Ele, menor, também. Menor, sim, mas bandido. Já tinha mortes nas costas. Já assaltara muita gente à mão armada. Já fizera chorar a muitos por vidas perdidas. Já fizera chorar a muitos por perder o trabalho de uma vida para que a vida não perdessem.

 

 

Quando, depois de muitas campanas, de muitas idas e vindas os policiais conseguiram localizar, por pura coincidência, ou sorte, o local onde o bando dos meninos estava acoitado. Era uma casa velha, abandonada, lá pelos lados do Sossego ou do Jardim Esperança.

 

 

Lá chegaram na madrugada, esperando pegar os garotos dormindo. A frente da casa ficava ao nível da rua e a parte dos fundos distava uns quatro metros do solo. Alguns policiais entraram pela frente. Outros cercaram as laterais. Conseguiram prender parte do bando. Outros saíram em correria atirando nos homens da lei.

 

 

Mas, o chefe deles, que exercia o comando do bando, exatamente, devido à sua esperteza, ao deparar-se com o próprio subdelegado que já quase o alcançava, saca de sua arma e, atirando a esmo, corre até os fundos da casa, de onde salta feito uma lebre.

 

 

Ao entrar em contato com o solo, agachado, com as mãos à frente, recebe o coice do tiro do policial que lá do alto havia saltado também. Naquela insólita posição a bala entra pela parte inferior das costas e segue em linha reta o seu caminho, dilacerando todas as vísceras e estruturas orgânicas por onde passa, até sair pela parte superior do abdômen, na altura do esterno.

 

 

O menino-bandido passa ainda por outras cirurgias até obter alta. Não era um garoto robusto. Era de corpo franzino, mas ágil. Com cambitos apropriados para a vida de correrias que levava. Definhara muito, porém, desde o dia em que, pela vez primeira, o recebemos naquela emergência aterradora. Estava agora com praticamente os ossos à mostra. Muito magro. Músculos em hipotrofia, talvez pelo longo período de inércia e repouso para a sua recuperação. Talvez por pouco alimentar-se. Mas, a cabeça à mil.

 

 

Lembro-me do dia em que, ao acordar da anestesia, após o fechamento da colostomia, olhou firmemente para o Wilson e, comovido, quase chorando, estendeu os braços na direção dele para abraçá-lo, e. com a voz mais forte que seu estado geral permitia, quase gritou:

 

 

“Dr. Wilson… meu… médico…” e desandou a chorar!

 

 

Não demorou um ano para que o menino-bandido às nossas mãos retornasse, baleado agora por um desafeto seu, desafeto que um dia fora seu seguidor. Não foi tão drástico o rombo no abdômen como da vez primeira. Mas, seguiu-se a este episódio mais um longo tratamento para a sua recuperação.

 

 

O tempo foi passando. E o menino-bandido continuava chefiando o bando de menores e aprontando das suas.

 

 

Em certa madrugada Dr. Wilson foi chamado, às pressas, para atender um baleado. Ao chegar na salinha de emergência, na entrada do hospital, nada mais era possível fazer. Já o encontra em óbito.

 

 

A bala, desta vez, acertara, em cheio, o coração do menino-bandido.





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