O martírio de Sami


Parecia fustigá-lo com o ardor que brotava daqueles fulgurantes olhos verdes como as esmeraldas que um dia ganhara de seu pai

 

 

Sami já não tinha mais certeza de nada. Em sua paixão e em sua vingança desenfreada passava horas seguidas, nas noites, a atirar, na escuridão, contra alvos invisíveis. Tanto treinou que já era um exímio atirador. Mas não imaginou que o fogo e a fumaça fizessem-no ver o que não existia e atirar sem enxergar o alvo. O infeliz rebento daquele forasteiro agora já ensaiava os primeiros passos e o amor de sua vida, a sua Anahi, se fora. Seguira para outros mundos enviada por um tiro que partira de seu fuzil. Jamais se perdoaria.

 

 

 

 

Destas suas elucubrações — a cada vez mais intensas, porque mais aguardente consumia, noite após noite —, seus companheiros tentavam tirá-lo. Em certa tarde, antes que a faina do dia findasse, um dos rapazes falou mais de perto, com ele. Conseguiu ser ouvido porque ainda se encontrava lúcido. Sami nunca bebia enquanto estava nas lides.

 

 

 

A comitiva encontrava-se acampada nos arredores de um vilarejo já bem povoado. Onde bailes com sanfoneiros e tocadores de rabeca atraíam jovens e velhos para uma animada diversão. Era um final de sábado. Aníbal, o amigo, tanto insistiu que Sami aceitou tomar banho em uma sanga próxima. Arrumou-se. Vestiu uma roupa limpa. Partiu com os amigos para o baile. Para uma noite de festa e alegria. Quem sabe a alegria seria sua companheira.

 

 

 

 

Já na entrada foi procurar pelo balcão para tomar logo alguns goles de cachaça. Não se sentia bem ali. Foi mesmo para não magoar mais o amigo. Enquanto sorvia, lentamente, aquela bebida que já lhe queimava as entranhas, levanta o olhar e, a apenas alguns metros de onde se encontrava, depara-se com a mais linda visão, jamais imaginada por ele. E a visão lhe sorria com o mais gracioso sorriso jamais imaginado por ele. Parecia fustigá-lo com o ardor que brotava daqueles fulgurantes olhos verdes como as esmeraldas que um dia ganhara de seu pai.

 

 

 

Sorriu também e aproximou-se da estonteante visão que mexia com o mais íntimo de seu eu. Começaram a conversar. A moça também parecia estar perto de um encantamento, a olhá-lo e a sorrir. Sami não aprendera a dançar. Mas ousou pedir que ela dançasse com ele. Não sabe como conseguia tirar os pés do chão. A moça rodopiava suas saias e batia com seus pés no chão como se uma bailarina nata ela fosse. Sami fazia o que via os outros rapazes fazer. Com a palma de uma das mãos estendida e a outra apoiada em sua cintura rodopiava também, ao som das rabecas e das gaitas. Era um prazer que vinha do outro mundo, de outras eras o que sentia quando os seus dedos, em um dos rodopios, encontrava-se com os dela.

 

 

 

Quando os músicos colocaram seus instrumentos de lado, para descansar e tomar uns goles de vinho, quedaram-se os dois, estáticos, no meio do salão, emudecidos, a se olhar. Quando Sami percebeu que somente eles ainda em pé lá se encontravam, foi saindo para o lado de fora do salão. E a garota acompanhou-o. À luz do luar que clareava a campina em redor ficaram os dois a se olhar e a balbuciar algumas palavras sem nexo e sem sentido. Porque nenhum dos dois sabia o que dizer. A atração tinha sido fulminante e nem atinavam se estavam na terra ou se tinham alçado voo. Quando deram por si estavam enlaçados e unidos em um longo e frenético beijo.

 

 

 

Haviam caminhado juntos e abraçados para longe. Em seu enlevo não pressentiram, de imediato, o ruído de muitas botas, a bater com seus tacões na terra ressequida.

 

 

 

Foi num átimo que ela percebeu quem eram as pessoas que, com seus fuzis nas mãos, vinham, em desabalada carreira, em direção ao ponto onde se encontravam. Jogou–se ao chão, a fingir um desmaio, ao mesmo tempo em que alertava o jovem assustado:

 

 

— Corra, Sami, mas corra pra muito longe. Meu pai e meus irmãos estão vindo e armados… corra…

 

 

Todo o treino de corredor que sempre o livrou de tantos lances perigosos não foi o suficiente para livrá-lo de um dos tiros que o atingiu na região posterior da perna direita, bem na divisa com a coxa. Instantaneamente caiu ao solo, rugindo de dor.

 

 

 

 

A moça, ainda, fingidamente, inerte, foi levada por seus manos para longe dali. Os companheiros do índio vieram em seu socorro. Sami sangrava muito. Com um lenço que estava em seu pescoço improvisaram um torniquete. O dono de uma botica do povoado— único local a que o povo da redondeza recorria para tratar de suas mazelas—, disse que o problema do moço não estava ao seu alcance.

 

 

 

 

— Eu nada posso fazer aqui. A bala atravessou a perna e no local já não se encontra mais. Então, não tem mais perigo. Mas continuem com o garrote para estancar este sangramento e procurem uma cidade maior para um médico fechar este ferimento.

 

 

 

 

Imputava-se, naqueles tempos, erroneamente, ser a retirada da bala a salvação de uma vida. Que impedir o sangramento com um garrote, mesmo que por muitas horas, livraria a pessoa da morte.

 

 

 

Os peões, companheiros de Sami, seguiram os conselhos de quem, achavam eles, sabia tudo e levaram-no, em seus braços, até uma das carroças do acampamento.

 

 

 

A comitiva deveria ficar mais uns dias naquela localidade. Só que naquela noite mesmo Sami começou a delirar. Sentia dores pelo corpo todo e a sua temperatura já subira além dos limites. E assim passou-se aquela noite e mais um dia inteiro. Aníbal, implorou aos patrões que lhe deixassem pegar uma carroça para levar Sami até uma cidade com mais recursos. Não foi atendido. A cidade mais próxima onde poderia encontrar uma assistência melhor estava na retaguarda. Já a haviam, há dias, deixado para trás.

 

 

 

 

Aníbal então arriscou sua vida e seu emprego a fim de salvar o amigo. Com a ajuda dos demais colocou-o, firmemente atado, a um dos melhores cavalos da comitiva. Com a destreza habitual saltou sobre outro e saíram em disparada, madrugada afora, em direção a Sorocaba. Onde, sabia ele, encontraria, na Santa Casa de Misericórdia, o socorro necessário para salvar Sami.

 

 

Voando pelas campinas e subindo íngremes serras, desviando a rota principal, indo em busca de veredas, por mais de três dias, cavalgaram quase sem parar. Os companheiros tinham arrumado um farnel com farinha e carne seca. A água, encontravam pelos caminhos. Mas muitas vezes Aníbal teve que parar para deitar Sami sobre um regato, a fim de esperar que sua febre abaixasse. A viagem poderia ter sido mais rápida se o paciente conseguisse dominar seu cavalo.

 

 

 

 

Por fim, em certa madrugada, tresnoitados, exaustos, conseguiram chegar até a portaria da miraculosa casa que abrigava os doentes de toda uma região a sudoeste da capital da província de São Paulo. Havia um sino perto da porta de entrada. Aníbal acionou-o. Uma pressurosa freira atendeu-os por uma portinhola, na qual apareciam apenas seus ombros e sua cabeça envoltos em hábito e véu brancos.

 

 

 

 

— Boas noite, dona freira. Que Deus Nosso Senhor lhe guarde. — Aníbal era órfão e fora criado em um convento de religiosas, ali mesmo, em Sorocaba.

 

 

 

— Que Deus o abençôe, meu bom rapaz. O que o traz, aqui, a estas horas da madrugada?

 

 

— Dona, Reverenda Irmã, estou com um amigo que há uns cinco dias já levou um tiro na perna. Já perdeu muito sangue e está desde aquele maldito dia ardendo em febre.

 

 

 

— Já vou abrir a porta ao lado e o senhor pode entrar com seu amigo. Vamos logo interná-lo, limpá-lo, fazer um curativo. Nós temos poucos médicos. E o único disponível hoje está operando um moço que foi destripado pelos chifres de um touro bravo. Os outros estão por aí atendendo problemas de doenças a léguas de distância.

 

 

 

— Dona, quer dizer, Reverenda Madre, onde eu posso deixar os cavalos e encontrar um canto para eu encostar meu corpo. Faz dias que eu só cochilo em cima de meu cavalo.

 

 

 

Aníbal ajudou o pessoal da enfermagem a lavar e a limpar o pobre Sami e a deitá-lo sobre uma maca. Irmã Maria Epifânia, ao ver os membros inferiores de Sami e o ferimento já todo supurado, arregalou os olhos, no maior susto de sua vida.

 

 

 

— Não era atoa que ele gemia tanto, como o senhor falou. Ele já está com a perna toda gangrenada. Vamos limpar logo isto aqui com o que temos que é água e sabão.

 

 

 

No dia seguinte, bem cedinho, Aníbal já lá estava, descansado e refestelado, para saber o que seria de seu amigo. O médico recém havia chegado e já estava providenciando os instrumentos para amputar a perna de Sami.

 

 

— Sabe moço — ia explicando-lhe o Doutor José —, não garanto a vida ao amputar todo o membro inferior, desde quase a virilha. Mas se assim não o fizer, posso garantir que a morte é certa. A gangrena subirá para o corpo e esta infecção que já está invadindo até o seu coração apressará sua ida para o outro mundo.

 

 

 

 

Aníbal tinha ainda com ele alguns cobres de seu último pagamento e podia pagar mais alguns dias na pousada barata que encontrara. Arrependeu-se de ter deixado sua barraca no acampamento da comitiva que comboiava as mulas carregadas de mercadorias em direção ao sul.

 

 

 

Foi demorada a recuperação de Sami. Aníbal procurou emprego pela cidade. Precisava arranjar dinheiro para pagar os serviços dos médicos e o tempo em que Sami ficaria hospitalizado na Santa Casa.

 

 

 

Encontrou-se, por acaso, certa noite, com alguns vaqueiros e soube que estavam programando um rodeio. Com prêmios em dinheiro aos vencedores. Aventurou-se e ganhou alguns trocados.

 

 

 

Quando Sami estava mais recuperado e sentiu que estava em condições de encetar a longa viagem de volta em direção à sua tribo, à sua taba, à sua gente, Aníbal foi com ele. Sabia que ele não conseguiria, tão cedo, montar sozinho em um cavalo. Para caminhar precisava de duas muletas.

 

 

 

No caminho de volta descobriram que estavam sendo procurados pelo roubo de dois cavalos. Mais difícil tornou-se a viagem de regresso. Nunca mais passaram pelos vilarejos por onde as comitivas costumavam passar. Não transitavam mais pelas mesmas rotas por onde as comitivas costumavam transitar.

 

 

 

 

Pelo menos, nesta viagem de volta, podiam descansar à noite. Parar, com calma, para comer alguma coisa. E num dia de sol alto e brilhante chegaram perto das barrancas do Rio Negro. Dali a mais algumas horas Sami estaria ao lado dos seus.

 

 

 

 

Foram recebidos com alegria. Foi longa e demorada a história que tinham para contar. A tribo de Sami a este tempo já tinha garbosos corcéis nos quais todos os jovens aprontavam as suas proezas. Piscou para o amigo que entendeu o que se passava em sua mente. O cacique concordou com a ideia. E logo a comitiva — de onde haviam partido, há mais de dois meses, naquela trágica noite— recebia seis garbosos alazões, enviados de presente por Sami e Aníbal.

 

 

 

Sami continuou sendo apoiado por suas muletas. Que apoiavam o seu físico. Mas sua mente vivia em desespero. Quase todos os dias dirigia-se até as barrancas do rio e ficava ali, por horas a olhar para a outra margem. Não se conformava em ter perdido Anahi. Primeiro perdera-a para aquele forasteiro e depois ele mesmo tirava a vida de seu grande amor.

 

 

 

 

Aníbal ficou ainda por alguns dias ao lado de Sami. Queriam que ele ali permanecesse. Mas não era o seu modo de vida. Sentia saudades dos tempos em que perambulava de norte a sul com os tropeiros.

 

 

 

Montou em seu cavalo e seguiu pela mata ao encontro da trilha das caravanas.

 

(Mais um trecho de um livro em elaboração.)





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