O longo caminho a pé através da estrada de ferro


A incrível história real de uma viagem a pé por 40 dias

 

 

Morava num pedaço de chão para além da vila. À beira da estreita estrada de terra que começava logo ao lado da igreja e ia dar em outro povoado distante. Estreita estrada barrenta e esburacada por onde circulavam apenas algumas carroças e carroções e solitários cavaleiros. Estrada de um tempo em que ainda não existiam tratores. De um tempo em que o arado era puxado por um cavalo e empurrado com tração humana. Estrada que levava a poucos sítios de bem afortunados colonos que tudo produziam. Que levava à casa de Gretchen que quase nada produzia.

 

 

Gretchen vivia das poucas hortaliças que cultivava. De um pouco de milho e aipim que plantava. Das poucas galinhas que criava. De lavar roupa para alguns solitários rapazes que trabalhavam na serraria. De algum dinheiro que sobrara das lides de sua mãe que há alguns anos partira já desse mundo. De outros trabalhinhos esparsos que fazia aqui e ali. Diziam que era meio bruxa, que contava do passado e do futuro através de umas cartas de um baralho diferente, com figuras diferentes e até com números diferentes daqueles que os carteadores aficionados utilizavam. Que benzia com ervas especiais que só ela sabia como plantar e como colher.

 

 

Era alta, de ossos salientes, rosto anguloso. Olhos azuis, pele muita alva e cabelos muitos loiros, escorridos. Que ela prendia na nuca quando saía para ir à Igreja ou para ver o trem passar. Não era jovem. Não para aquele tempo. Dizem que o marido, ou companheiro, a deixara logo que e mãe dela morrera. Porque ele teria então que ajudar a prover a casa e não era chegado ao trabalho. Sumiu rumo ao desconhecido.

 

 

Para se entrar na casa onde Gretchen morava era preciso subir por uma escada de terra batida e atravessar um espaço que já fora um portão entre restos caídos de uma cerca de madeira. E passar por um jardim nem sempre florido. Uma casa sem varanda, com uma porta e uma janela. Paredes que nem se lembravam mais de um dia terem sido caiadas.

 

 

Tinha uma filha pequena. Branca, alva, loira e de arregalados olhos azuis como os dela. E magra, muito magra. Que frequentava a escola da vila. E que ganhava alguns tostões cuidando de crianças em casas de famílias mais abonadas.

 

 

Numa tarde qualquer em que Gretchen se encontrava com a filha na plataforma da estação de trem da vila, olhando o movimento, viu que de um dos vagões de um cargueiro retiravam uma enorme máquina. Muitos homens lá naquela azáfama para baldeá-la para um caminhão ao lado. Muita gente observando o movimento. E Gretchen, curiosa, aproximou-se. E foi então que ela o viu. Olhar arguto e cintilante fixo nela. Olhos de jabuticaba. Dentes alvíssimos. Tez morena, muito morena. Que ela imaginou de uma cor apenas queimada de sol. Mas era muito mais que isto. Era mesmo da cor do azeviche. Meio encabulada, disfarçou. Pegou na mão da filha e pensou em ir pedir um copo d´água na casa do chefe da estação. E ele foi ao encalço dela.

 

 

Era o técnico que acompanhava a instalação de um novo maquinário na serraria em frente. E ficou alguns dias na vila. Primeiro no hotel que ficava ali bem perto da ferrovia. Depois na casa dela. Comprou tecidos estampados para que ela fizesse vestidos novos. Encheu a prateleira de sua cozinha com o que havia de melhor para se comer. E ela, feliz, com carinho, preparava quase que verdadeiros banquetes para ele. Levou-a para os bailes da vila e para o cinema da cidade próxima.

 

 

Um dia a instalação da nova máquina chegou ao fim. E o moço de olhos de jabuticaba precisava voltar para a capital de onde viera e onde morava. E a levou com ele. Porque, disse, não poderia mais ficar sem o tempero de sua comida e sem a doçura de seus braços.

 

 

Embarcaram os três no trem de passageirosque levava para a grande cidade. Um dia inteiro de viagem. Chegaram à noite. Ele morava num bairro distante para onde foram de ônibus. Instalou-as num paiol que ficava nos fundos da casa. Disse-lhe que de lá só saíssem no dia seguinte quando ele fosse procurá-las. Em sua simplicidade algo como um sinal de advertência Gretchen sentiu.

 

 

Logo ao amanhecer ouviu intensa algaravia de crianças. Através das frestas do paiol percebeu que todas tinham a mesma cor de pele de seu amado. Quando não mais ouvia o barulho das crianças aparece ele na soleira da porta do paiol. Diz a ela que a trouxe para ser a criada deles e a menina para servir de babá para as crianças. Que a esposa dele não sabia cozinhar e nem cuidar de uma casa. E que não servia nem como mulher para dormir com ele. Que quando desse ele viria ao paiol para passar umas horas com ela…

 

 

Os tumultos que se passaram pela alma de Gretchen só os demônios dela ficaram sabendo. Imaginou então que ali teria um pouso e comida e no fim do mês uma justa remuneração. Com o que recebesse compraria as passagens do trem e retornaria para a sua casa na beira da estreita estrada que saia da vila ali logo a par da igreja.

 

 

Mas o inferno foi muito pior do que tudo que ela poderia ter imaginado naquele momento. A patroa não era fácil. Implicava com tudo o que ela fazia. Implicava com sua filha que nem os estudos pode continuar porque tinha que atender as malcriadas crianças em todas as horas do dia. Para comer dava-lhes os restos rejeitados dos pratos deles todos. E o moço dos olhos de jabuticaba nunca mais foi dormir em seus braços.

 

 

O fim do primeiro mês chegou e a desculpa para nada lhe pagar foi apenas uma conta dos tecidos e da comida que lá na distante vila para ela ele comprara. No mês seguinte foi a conta das passagens de trem dela e da filha. As passagens daquela viagem que levou um dia inteiro entre a sua pequena vila e a grande cidade.

 

 

Ela já conhecia o caminho que o ônibus percorria para chegar até a grande estação da capital que ficava ao lado de uma arborizada praça. Porque já tinha ido, várias vezes, com a patroa, até o grande mercado, quase ao lado, para fazer o rancho da semana.

 

 

Durante a noite juntou seus trapos e os de sua filha em duas trouxas que fez com os lençóis e traçou seus planos de retorno à sua velha casa, herança de sua mãe, que ficava na estreita estrada que levava de sua vila a um povoado distante.

 

 

O verão findara e o outono já estava em andamento quando teve início a sua grande aventura. O dia não havia ainda clareado e as duas iniciaram a longa caminhada. Primeiro, rumo à estação ferroviária. Sempre a pé, porque nenhum tostão em sua bolsa ela tinha.

 

 

Para os ferroviários que lá encontrou perguntou qual a linha que levaria em direção à sua vila, à estação de trem onde ela tinha a sua casa. Seguindo os trilhos, em rumo ao sul elas foram. Gretchen não tinha ideia de quantos quilômetros deveria caminhar. No anoitecer do primeiro dia parecia-lhe que as luzes da grande cidade ainda eram visíveis. Acomodaram-se num rancho que encontraram à beira da linha. Um rancho só com três paredes e uma frágil coberta. Em meio a um campo desnudo. O vento uivando fazendo-as tremer de medo. O vento açoitando fazendo-as tremer de frio.

 

 

Das sobras do jantar da noite anterior Gretchen guardara umas bananas e um pão seco. Foi o alimento delas nesta primeira etapa de sua longa jornada.

 

 

Sucediam-se os dias. E as noites. Comiam o que encontravam pelo caminho. Roças de aipim e de milho pelas margens da ferrovia. Gretchen colhia espigas ainda meio verdes para comer. Arrancava tubérculos de um aipim que cru mesmo eram ingeridos. Ainda bem que se lembrara de levar consigo uma faca. Às vezes tinham sorte de encontrar árvores frutíferas que os ferroviários plantavam também naqueles trechos entre os trilhos do trem e as propriedades vizinhas. Mesmo não sendo cercadas estas plantações, porque ficavam em terrenos da rede ferroviária,dali elas eram enxotadas, muitas vezes, como se fossem ladras.

 

 

Comiam raízes de plantas desconhecidas, catavam larvas, catavam o que podiam para amainar a fome que lhes roía o ventre, que lhes corroía o físico, que estremecia a alma. Distúrbios gastrointestinais a lhes minar mais ainda as forças que restavam. E nas frias noites de outono uma insidiosa tosse mais exauria ainda o seu organismo.

 

 

Mas a vontade férrea de Gretchen a tudo superava. E continuavam a caminhar, caminhar, caminhar…

 

 

Quando chegavam em algumas das estações de trem Gretchen implorava que lhe desse um trabalho de roçar ou carpir, ou de limpar a casa ou de lavar e passar roupa em troca de um prato de comida. Mas os andrajos que vestiam não inspiravam confiança para deixá-las adentrar as casas ou meros quintais.

 

 

Os calçados foram se deteriorando. As solas se desgastando pelo contínuo caminhar. Lavar rosto e mãos ainda era fácil. Sempre se deparavam com límpidas águas que corriam pelas valetas ao longo da linha férrea. Em dias de sol conseguiam até tomar banho sob a água que sempre jorrava de fontes nas encostas e ou mesmo das caixas de água onde as locomotivas a vapor eram abastecidas.

 

 

Mas encontraram também almas caridosas que as ajudaram com um abrigo em cama com colchão de palha e boas cobertas. Com uma sopa quente e um café fumegante. Com um pão recém saído de forno a lenha. Com roupas que cobrissem seus corpos, pois as que vestiam já não mais cobriam sua nudez.

 

 

Sim, porque muitas vezes nas suas andanças precisavam jogar-se, rapidamente, para os barrancos recheados de plantas espinhentas, a fim de não serem abalroadas pelos trens que, inopinadamente, à frente surgiam.

 

 

Foram mais de quarenta dias de caminhada até vencerem os mais de trezentos quilômetros que separavam a sua pequena vila da grande cidade. Porque houve dias em que nem um metro conseguiram vencer. Pés sangrantes, músculos lassos, forças sumindo.

 

 

Gretchen foi acolhida pelos vizinhos e amigos de sua terra. Voltou à sua vida de antes. Fazendo o que sabia fazer a fim de sobreviver. Gisela, a filha, cresceu. Alguns anos mais tarde foi trabalhar com minha mãe no restaurante da estação e em nossa casa. E um dia ela me contou esta terrível aventura. Cujo início pode não ter sido assim. Mas o longo caminho a pé pela estrada de ferro, feito por elas, desde Curitiba até Marcílio Dias é real. Reais não são os nomes das personagens.

 

 

 





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