Uma linda boneca de porcelana de rosadas faces, Brigith era a graça que desfilava diariamente pelas ruas de minha vila. Seus louros e encaracolados cabelos esvoaçavam por seus ombros, embalados pelo vento e pelo ritmo de seu caminhar. Tinha os mais límpidos olhos azuis, quase violetas de tão azuis, brilhantes, de olhar firme rumo ao infinito, contemplando o futuro.
E o seu sorriso eterno se extravasava através de seus carnudos lábios mostrando sempre uns dentes que eram alvos como a neve que ela nunca tinha visto.
Delgada e suave, com suas longas pernas, caminhava pela vida carregando o seu fardo.
Já de manhã, bem cedinho, mochila às costas, ia para a escola. Porque estudar é preciso.
Já de manhã, bem cedinho, ia ela levando nas mãos duas enormes bolsas de lona repletas de litros com leite que ia entregando, de casa em casa, para a freguesia toda, no caminho para a escola. Precioso líquido que era entregue fresquinho, pois que já de madrugada ela tirara das vacas. Porque trabalhar também é preciso.
Em todas as manhãs era assim que eu sempre a via. Nos dias de aula, com seu impecável uniforme azul e branco. E nos demais dias de calor, em seu vestidinho de chita estampando sempre as coloridas florzinhas do campo. No dias de frio, um cinzento agasalho usado que alguém lhe dera. Nos pés, tamancos de grosso solado de madeira a enfrentar a pegajosa lama ou suas modestas sandálias a espalhar a poeira da estradinha que a levava até a vila.
Impressionantes eram as suas notas na escola. Boletins com rosários de zeros… só que os zeros de Brigith tinham sempre o número um à frente. Sempre elogiada pelos mestres pela inteligência e pela dedicação. Onde ela arranjava tempo para estudar? Precisava também recolher o feno para as vacas. E em todas as modorrentas tardes de verão e em todas as enregeladas tardes de inverno ela desfilava com um carrinho de duas rodas, empurrado por ela, carregado do precioso alimento para o gado. E sempre sorrindo.
Brigith era a filha mais nova. Antes dela, muitos irmãos mais velhos. E nenhum deles jamais tinha se sobressaído nas salas de aula por onde passaram. Nenhum deles jamais deixara um marco pela elegância no andar que a nossa boneca de porcelana tinha. Todos, sem exceção, andavam molambentos, sujos, não conseguindo trabalhar nem nos mais simples afazeres que a nossa pequena vila proporcionava.
A simples chegada dos irmãos dela para a escola já era o prenúncio de uma tragédia. Não por não serem obedientes. Eram. Não por serem indisciplinados. Não eram. Eram quietos até demais. Só que nada aprendiam. Nem a escrever as vogais e, muito menos os números.
Os cadernos todos de todos eles mostravam apenas, e sempre, linha após linha, página após página, um interminável e confuso desenho de pequenas aves que estivessem eternamente, e em bando, vagando ao longe, lá pelos infinitos espaços. Era sempre um pequeno rabisco que subia e descia, como um eterno “i” minúsculo e cursivo sem seu pingo.
E isto já se repetia por mais de uma geração naquela família. Conseguiram o certificado de conclusão do quarto ano do curso primário só depois que apareceu a tal da lei da promoção automática… Antes dela, jamais haviam saído do primeiro ano.
Então Brigith era um anjo que viera em missão para cuidar da família? E que missão esta menina, este anjo estava cumprindo…
Qual o milagre que havia acontecido?
Só sei que um dia a mãe dela, dona Marichen, apareceu no Posto de saúde para iniciar o Pré- Natal. E apareceu logo após alguns dias de atraso de sua menstruação. E fora a primeira vez que ela comparecia para uma consulta Pré-Natal, embora já tivesse vários filhos. Estava limpa, sorridente, bochechas coradas, rosto cheio e altaneira até. Não como a conhecíamos. Era uma mulher sempre triste, ombros caídos, corpo encurvado, rosto encovado, olheiras escuras e fundas. Não, esta era outra Marichen.
O que teria acontecido?
Amigas da Igreja Evangélica Luterana de nossa vila tomaram a si o encargo de levar saúde, luz e amor para aquela família. E o trabalho de formiguinhas já havia tido o seu início muito antes da fecundação, muito antes da vida embrionária de Brigith. E estes cuidados todos continuaram até muito tempo depois de ela ter chegado ao mundo.
As senhoras da comunidade evangélica luterana de minha vila levaram não só o afeto e os conselhos para o lar de Marichen, lar que depois viria a ser o lar de Brigith.
Levaram também o pão nosso de cada dia. Não levavam apenas o trigo, entregavam diariamente também o pão quentinho e fresco. Não levavam apenas o cesto de alimentos, mas levavam também o alimento pronto para ser saboreado. Ou iam prepará-lo ali, junto com Marichen, dando-lhe, assim, ânimo e prazer nunca antes sentido por ela naqueles afazeres domésticos de todos os dias.
E o que faziam estas abnegadas e desprendidas senhoras o faziam por amor. Para que assim tivessem certeza de que aquele novo ser que viria ao mundo, chegasse com todo o aporte plástico-proteico-nutricional que cada célula de um organismo vivo requer para enfrentar as lutas de todos os dias.
E não era apenas a cobertura alimentar que proporcionaram àquela gestante. Acompanharam-na em todas as consultas e em todos os exames. Incentivaram-na a exercitar-se. Providenciavam a necessária medicação. Não permitiam que se descuidasse de ir também ao Posto de Saúde tomar as vacinas de rotina. E até o enxoval da criança já lá se encontrava aguardando junto ao lindo berço.
Assim, então, Brigith chegou. Viçosa e robusta. E sugando, sofregamente, um sadio leite de um seio farto de sua agora saudável mãe.
Estudou e trabalhou uma vida do alto de sua sorridente e bela silhueta. Ficou junto de seus pais, deles cuidando com desvelo e carinho até o dia em que partiram para morar em outros céus.
E então foi ela morar em lugar distante de nossa vila, um lugar onde ela está muito bem em sua nova vida, onde é muito amada, onde é a dona, a mestra, a chefe de uma nova família, onde continua distribuindo seu amor e seu lindo e meigo sorriso.
E nestes meus rabiscos de agora eu me sinto emocionada quando apenas me lembro e tento imaginar o ilimitado amor e o ilimitado bem estar proporcionado a tantas e a tantos pelas nossas amigas da OASE, esta tão pouco conhecida e quase nunca homenageada Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas da Igreja Protestante Luterana de minha aldeia.