O horror no entardecer de um domingo


Como um prenúncio de tempestade a tarde amornara. Calor parado no espaço azul. Noite chegando sem teatral crepúsculo.

E todos ali. Naquele entardecer que se ia. No dia de trabalho que findava. Ruído de cartões sendo batidos no relógio-ponto. Portões batendo a saudade. Pessoal saindo de um turno. Outro entrando.

E a morte entrando. E a vida chegando. E a vida morrendo. E a morte nascendo. E de cada morte voltando. E para a morte voltando.

E entre estas idas e vindas, no meio deste torvelinho ela chegou estendida na maca de vermelho marcada. A maca era branca e o vermelho escorrendo, vermelho gosmento, vermelho viscoso, vermelho visguento. Empapando no chão, num chão que era branco. Empapando na gente. Grudando na pele queimada. Na pele judiada. Na pele macia de mãos que ajudavam.

Três furos. Três rastos deixados pela morte adentrando o corpo claro queimado de sol. E deixando baços aqueles olhos verdes de menina-mulher quase tragada da tragédia da vida para uma trágica morte.

Três furos. Três rastos deixados pela morte adentrando o ventre e o peito. Rasgando a carne e deixando escorrer vida vermelha pelo branco da maca. Os verdes olhos baços de longos cílios e o sorriso fraco escorreram pelo corredor em meio ao cheiro acre do líquido vermelho e viscoso pingando nas chapas com negros e brancos desenhos mostrando os ninhos onde as balas se alojaram. Mostrando as balas ao lado da espinha e bem dentro de seu pulmão. E outra perdida pelo tripanal da barriga.

Não gemia. Não se desesperava. Nos seus dezessete anos já percorrera todos os gemidos da miséria e da dor.

Seus verdes olhos mostravam ternura imensa pelas mãos que a queriam reter para a vida.

A porta se fechou atrás da maca e ela sumiu para um mundo de sonhos e oxigênio e gases anestésicos, de sangue e soro, de pinças e tesouras e agulhas e fios e bisturis, de sorrisos e angústias, de pijamas e gorros e máscaras.

Mascarados da noite de sangue que sucedeu a tarde de morte, prometendo um amanhã para a vida.

Na memória enevoada da menina-mulher envolta em sangue pedaços de lembranças perpassavam.

O encontro nas tardes pelas ruas da cidade com aquele homem de cabelos já quase brancos, aquele homem já com muitas rugas que lhe franziam a face. Aquele homem que a convidava para passear, para um cinema, para um café. E ela sempre se esquivando … por medo? Medo, sim, medo de que se cumprissem as ameaças do namorado com quem há muito já rompera … com medo das ameaças de seu velho amor-bandido …

Naquele domingo de sol fora à Igreja onde há muito não ia. E ao voltar a cabeça vira o velho senhor de cabelos quase brancos ajoelhado a seu lado.

E era dia de festa, dia de quermesse da Igreja. Saíra correndo do templo e fora logo atrás das meninas que vendiam fitas, que vendiam missangas, que vendiam bobagens para levar de lembranças. E ele atrás dela. E rindo comprara tudo o que ela escolhia. Almoçaram juntos e numa animada conversa ficaram. E ela gostou do que falava aquele vetusto senhor que poderia dela ser avô. Mas ele queria mais. Era um solitário viúvo e a queria para ele. Poderiam já se casar. E a vida dela mudaria.

E no bulício da festa passaram a tarde que corria ensolarada. Estavam ainda, sorrindo, a conversar no improvisado barracão tomando um café quando um rugido no mundo ecoou e um rio de sangue escorreu para o chão.

E na semi-inconsciência de uma sala em branco, de uma sala em quase silêncio onde entre os sons de aparelhos que sopravam, de aparelhos que pareciam reverberar os sons de seu coração ela ouviu um sussurrar de pedaços entrecortados de uma história… pedaços de sua história…

Um senhor de cabelos quase brancos e muitas rugas que lhe franziam a face fora atingido por seis balaços e apesar da equipe médica fazer o impossível naquela madrugada, ainda na sala de cirurgia, ele se fora.

E o marginal alucinado que neles atirara empreendera uma alucinada fuga e na troca de tiros com os homens da lei tombara em plena rua e ao hospital chegara já sem vida.

E ela mergulhou mais uma vez na semi-inconsciência de onde não queria mais voltar.





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