Noêmia Rauen Romais, uma atriz que ensinava o bê-á-bá!


Noêmia (penúltima da esq/ para a dir) com os irmãos Eurico, Ayres, Otávio, Victor, Leonor e Edite/Arquivo da família

 À luz de um lampião ela ficava, por longo tempo, a ler

 

 

 

Tento atravessar o nevoeiro que envolve a memória. Preciso chegar a um longínquo tempo, o tempo de minha infância mais infância. Porque eu fico a me lembrar de histórias lindas que lá, naquele tempo, eu ouvia. Não era no rádio. Nem no cinema. Mas a voz maviosa, perfeita, de quem as lia e as contava, ficou gravada em minha mente.

 

 

 

Morava em um local distante da cidade e distante de minha vila também. Bom, para uma criança, tudo o que não fica em seu conhecido entorno, é um lugar muito distante. Mais que viver no meio do mato, tudo era mais complicado e difícil. Estradas que não ajudavam. Nosso território tem um relevo bem diversificado. Apesar de ser considerado como um plano este norte do estado, nós que por ele trafegamos conhecemos as elevações, os morros e os vales que se estendem por aí.

 

 

E assim era naqueles tempos em que, por estradas poeirentas e ou barrentas, circulavam as carroças. Com lentidão atravessavam-se os caminhos.

 

 

 

Não sei desde quando ela era amiga de minha mãe. Mas sei que pernoitou inúmeras vezes em nossa casa. Chegava de Canoinhas no trem misto das 5 horas da tarde. Sem condições de continuar, em uma carroça, até o seu destino.

 

 

 

Lembro-me de uma festa de batizado lá no restaurante da Estação Ferroviária de minha vila. Meus pais foram os padrinhos de batismo da filha mais nova da grande amiga. E mais que amigas, comadres se tornaram.

 

 

 

Ela era professora de uma Escola Elementar no sertão onde morava. E eu gostava muito do nome daquele reduto. Matão. Que, para mim, era um mato muito grande. E a curiosidade imperava em conhecer o Matão. Porque, dentro da minha concepção infantil deveria ser algo muito lindo. O nome, por si, já contava sua história.

 

 

 

Não tenho certeza, mas tenho aqui comigo que ela e sua família moravam em uma casa anexa à escola. Ou ao lado. Construções simples, de madeira. Sem pintura. Madeira que o tempo transformava em cores escuras, quase negras.

 

 

 

E era uma festa quando ela chagava lá em casa. Porque nós já sabíamos que novas histórias ela tinha para contar. Que um novo livro ela trazia na bolsa. E que iria lê-lo para nós. Era uma contadora de histórias.

 

 

 

Vejo-a em minha mente, recostada na cabeceira de uma larga cama de casal, bem no centro, rodeada por todos os lados de quase uma falange de crianças. E algumas adolescentes nas cadeiras ao redor. À luz de um lampião ela ficava, por longo tempo, a ler.
Lia, não! Interpretava as falas dos personagens. Uma entonação diferente assumia a sua voz quando passava pelos fatos e as descrições de casas e paisagens. Uma atriz! Ficávamos embasbacados a ouvi-la. Por horas.

 

 

 

Quem já ouviu Iris Leitieri, em alguns aeroportos, falar sobre chegadas e partidas de aeronaves, pode ter uma leve ideia da dicção perfeita, da entonação e do timbre da voz de Dona Noêmia Rauen Romais ao debulhar histórias e mais histórias para sua plêiade de ouvintes.

 

 

 

Ainda bem que criança apaga cedo a luz dos olhos. Mas mesmo assim, Dona Noêmia mandava-nos para nossos quartos porque era hora de ler livros de adultos. Para adultos. Havia um romance, em dois volumes, que ela lia em capítulos. “Alma Negra” era o seu nome. Tinha sido publicado, em série, semanalmente, por um jornal de Curitiba. Minha mãe colecionou a suas partes. Mandou encadernar. E esta era uma das leituras dirigidas às pessoas grandes.

 

 

Muito antes de termos as novelas de rádio, nós já tínhamos uma artista a interpretar inúmeros personagens de múltiplas histórias.

 

 

 

Alegria maior eu tinha nos dias em que minha mãe permitia nossa ida ao Matão, junto com Dona Noêmia e sua escadinha de filhos. Isto sim é que era uma festa. Além das maravilhosas iguarias nas refeições que ela nos proporcionava, havia, ainda, aqueles bolos sem recheio e sem cobertura que eram uma delícia de tão fofos.

 

 

 

Lá se repetia a mesma encenação. Com uma diferença. As Sessões culturais eram exclusivas para as crianças. Creio que os filhos mais velhos dela já estavam estudando no internato.

 

 

 

A viagem era longa. Uma carroça era a nossa condução entre a minha vila e o Matão. Íamos apinhados em meio às compras. Íngremes subidas, em muitas ocasiões com os cavalos resfolegando com suas patas enfiadas no barro. Às vezes éramos obrigados a descer do veículo, e ajudar a empurrá-lo, tal o lamaçal a ser vencido. Dona Noêmia só ria e dizia que depois teríamos que puxar muita água do poço e colocar num caldeirão para esquentar e pudéssemos nos banhar e ficarmos livre do barro que se agregara até nos cabelos.

 

 

 

Tudo compensava pelo prazer de ouvi-la contar histórias. Fico só a imaginar a felicidade de quem foi aluno dela na escolinha do Matão. Ter uma atriz, como ela, sendo sua professora, muito fácil seria o aprendizado.

 

 

 

O tom de sua voz, perfeito, sua dicção sem omitir e nem acrescentar vogais e ou consoantes continua amalgamada no fundo do lago azul de minha memória.

 

 

 

Sua família era imensa. Eram filhos que não acabavam mais. Eram de todos os tamanhos e idades. Era casada com seu Willy. Só o conhecia como seu Willy. Creio que seu nome era Guilherme, Creio. Era um legítimo tropeiro. Sempre com seu chapéu de abas largas. Seu poncho. Lenço vermelho no pescoço. Um anel de ouro a prendê-lo. Botas e bombachas. E sempre a sorrir.

 

 

Já no meu quarto ano na Faculdade de Medicina eu frequentava as enfermarias da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba. Eu deveria estar no sexto ano, talvez, quando recebo um recado de que um senhor estava na portaria do hospital e queria falar comigo. Ao lá chegar encontro o seu Willy. Já muito magro e com um tom de voz meio perdido. Não estava bem. Pediu que eu o examinasse. Falei com o professor Felipe Lerner, chefe da enfermaria de Clínica Médica, da qual eu era acadêmica interna. Seu Willy foi internado. O diagnóstico foi o pior possível. Até hoje não sei como foi que lá ele foi me encontrar. Coisas de famílias irmãs. Apressei-me em enviar um aviso, através do telégrafo da Rede Ferroviária, para meus pais.

 

 

Nancy, uma das filhas, seguiu os rastos de sua irmã mais velha e foi trabalhar para um casal, creio que em Nova Iorque. Estudou e passou a exercer funções no escritório da empresa de seu primeiro patrão. Quando retornou ao Brasil construiu uma confortável vivenda no bairro de Santa Felicidade, em Curitiba. E Dona Noêmia foi morar com ela.
A saga da família de Dona Noêmia Rauen Romais merece um livro, uma novela, um filme, tão cheia de detalhes e minúcias foi ela construída.

 

 

 

Uma das minhas alegrias foi, certa vez, ao comentar algo sobre Dona Noêmia Rauen Romais com jovens amigas minhas, perguntarem-me se eu a conhecia. Foi então que fiquei sabendo que o Jardim de Infância que elas frequentaram, quando pequenas, tinha o nome de “Noêmia Rauen Romais”.

 

 

 

Oxalá todas as Escolas e os hoje Centros de Educação Infantil de nossa região ostentassem os nomes das excelentes professoras que, enfrentando as maiores dificuldades, ensinaram a tantas e a tantos as primeiras letras e os primeiros números.





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