Nas planícies do Eire


Escena de taberna/David Teniers/Reprodução

Mesmo com as crescentes dificuldades que estavam sendo enfrentadas pelo povo irlandês jamais deixavam de se juntar, aos bandos, para cantar e dançar

 

 

George crescera solto como os passarinhos, em meio à extensa planície que se estende por quase todo o centro da ilha que fica a oeste da Inglaterra. Seus antepassados sempre viveram do cultivo da batata. Mas também tinham plantações de nabo e de beterraba. Criavam o gado bovino e suíno e tinham campos cobertos de ovelhas. E assim sobreviveram por gerações.

 

 

 

A terra, como era de praxe, foi sendo dividida entre os filhos, depois entre os filhos dos filhos até se chegar a um tempo em que restara apenas um pedaço equivalente a pouco mais de dois hectares para cada um. Sem contar com a ganância dos grandes proprietários de terras que, aos poucos, invadiram as pequenas propriedades, tornando-se donos delas. Além de pouco se colher, aluguel ainda deviam aos aristocratas que viviam na corte e para aqueles rincões nem duas visitas no decorrer de uma vida faziam. O dinheiro era todo enviado para a Inglaterra. E a Irlanda a padecer de fome e miséria.

 

 

 

 

George era o mais novo de oito irmãos. Com uma diferença já de quase uma década entre ele e o irmão que o antecedeu. Deve ter vindo ao mundo num raro acaso sutil. Talvez o último óvulo gerado no seio de sua mãe.

 

 

 

 

Conhecia quase toda a parte oeste da ilha através de suas andanças pelos quatro cantos, em busca de aventuras, voando pelas pradarias com seu ágil corcel. Ou entregando batatas em seu carreto.

 

 

 

Ficara vivendo com os pais, na propriedade que lhes restara e que ainda era vista como uma das grandes da região. Sabia que era só com ele que os velhos poderiam contar pois o peso dos anos já não permitia que se debruçassem sobre os rústicos arados e no trato aos poucos animais que ainda possuíam.

 

 

 

Viviam não muito longe das encostas que rodeavam o mar. Tinha amigos em toda a região. Em muitos sábados corria até as tavernas, junto aos rochedos, para com eles se divertir. Mesmo com as crescentes dificuldades que estavam sendo enfrentadas pelo povo irlandês jamais deixavam de se juntar, aos bandos, para cantar e dançar.

 

 

 

Em uma destas festas Seán, seu melhor amigo, estava acompanhado da mais bela jovem de quantas George já tivesse visto na vida. Ficou em êxtase a olhar para ela. Percebeu que ela também não tirava os olhos dele. Mas… e Seán…

 

 

 

Quando os músicos começaram a entoar as velhas canções celtas sentiu que deveria convidar a moça para dançar. Mas não teve coragem. Apenas há poucos minutos ela havia entrado na taverna. E com o braço enlaçado em seu melhor amigo. As conversas andavam animadas entre o grupo de rapazes. E a garota, quieta, sempre grudada ao braço de Seán.

 

 

 

 

George não aguentava mais de ansiedade. Pensou em ir embora. Chegou mais perto do casal. E então tirou uma coragem do fundo de sua alma e, baixinho, no ouvido do outro falou:

 

 

 

— Porque não nos apresenta logo sua noiva?

 

 

 

Seán soltou uma estridente gargalhada e ainda rindo foi falando com sua tonitruante voz:

 

 

 

— Amigos hoje eu não poderei ficar muito tempo com vocês. Meus pais foram a um casamento em uma distante vila e incumbiram-me de ficar em casa fazendo companhia à Sinead, minha irmã mais nova. Mas não aguentei ficar em casa numa noite tão linda de sábado e resolvi trazê-la junto para confraternizar com vocês. Mas ela é muito tímida, diz não saber dançar e nem cantar e só concordou em vir comigo se voltássemos logo para casa, antes que nossos pais retornem da festa de casamento.

 

 

 

 

O suspiro de alívio no peito de George deve ter sido ouvido até pelos barcos dos pescadores que ficavam lá longe deitados perto da encosta.

 

 

 

 

E antes que algum outro ousasse, adiantou-se e, com uma reverência digna dos lordes, convidou-a para uma primeira contradança. Sinead, em uma purpúrea face, sorriu meigamente e confirmou o que o irmão acabara de dizer e que todos ouviram.

 

 

 

—Mas eu não sei dançar…

 

 

—Eu também não sei – afirmou George —, mas vamos aprender juntos.

 

 

 

Então ela estendeu-lhe a mão, coberta com um lenço. Como era hábito, nem se tocavam nas pontas dos dedos. Acompanharam, no meio do salão outros casais que faziam as suas circunvoluções. George, encantado a olhar a delicadeza com que ela segurava, com a outra mão, a aba do longo vestido.

 

 

 

Quando findou a música retornaram à mesa onde se encontravam Seán e os outros amigos. Era hora de Sinead ir embora. Disse ela que já haviam permanecido ali tempo demais.

 

 

 

 

George saiu com eles. Embevecido, queria ainda ficar olhando para ela e ouvindo sua voz por mais algum tempo. Entregou seu negro corcel a Seán. Ajudou Sinead a subir na pequena carriola e, cerimoniosamente, sentou-se na boleia tomando as rédeas na mão.

 

 

 

 

O caminho já era conhecido de George e ele tentou dar voltas para, por mais tempo ficar ao lado da linda mulher que fizera seu coração sair do lugar. Mas Seán estava atento e conseguiu convencer o amigo que deveriam se apressar para chegar logo ao seu destino.

 

 

 

 

Em todos os dias que se seguiram George sempre encontrava um motivo para entregar a sua pequena produção de batatas para o lado da propriedade dos pais de Seán e Sinead.

 

 

 

 

Que achavam ser aquele garoto muito jovem ainda para ficar rodeando a sua filha. Bilhetes deixados em caixa de madeira junto ao portão de entrada da pequena fazenda eram logo recolhidos por Sinead antes que seus pais os encontrassem.

 

 

 

No correr dos dias George conseguiu convencer o amigo Seán que estava pronto para se casar. Que ele já estava tomando conta dos negócios e do trabalho de sua família.

 

 

 

A festa de casamento foi realizada na casa dos pais dela. Com todos os amigos reunidos. Com celebração na capela que ficava na vila próxima.

 

 

 

Os pais de George vinham padecendo há anos com as doenças fúngicas e virais que atacaram as plantações de batatas de quase todos os produtores do país e o que colhiam já quase não cobria as necessidades de alimentação da própria família.

 

 

 

 

O jovem casal dedicou-se, ao extremo, na busca de melhores tubérculos, de um melhor manejo com a terra. Mas parecia que tanto eles como os demais vizinhos não encontravam solução. Que nada poderiam esperar dos atuais donos das terras para quem, obrigatoriamente, continuavam a pagar o aluguel. Um extorsivo aluguel equivalente à quase total produção de batatas.

 

 

 

 

Muitos irlandeses foram deixando para trás suas casas, seus arados, seus animais, seus pertences. Juntavam o pouco que coubesse em cima de suas carrocinhas puxadas por um cavalo só e partiam em busca de outros sonhos em outros países.

 

 

 

Não foi diferente para George e Sinead. Estava ela na tentativa de levar ao fim uma terceira gravidez. Da primeira vez conseguira completar o primeiro trimestre. O segundo nascera morto, prematuramente, antes de completar o sexto mês.

 

 

 

Diziam as parteiras e as benzedeiras entendidas da região que os bebês iam embora para junto da morada de Deus porque sabiam que aquela terra se tornara estéril e podre como as batatas que já não vingavam mais.

 

 

 

Certa manhã, George saíra para entregar, a quem ainda lhe pudesse pagar, os últimos sacos de batatas que conseguira escolher, a dedo, sem sinal de doença, em meio aos mais de cem que havia colhido.

 

 

 

Pediu para a esposa que arrumasse malas feitas com grossos panos de aniagem e neles colocasse o que de mais importante conseguissem levar. Porque iriam até Dublin, do outro lado da ilha, na esperança de logo tomar um barco e dali daquela terra esquecida por Deus, sair o mais rápido possível, enquanto vida e um pouco de vigor lhes restassem. Contava com o dinheiro da venda daquelas últimas batatas para conseguirem sobreviver até sabe quando…

 

 

 

O irmão de Sinead, Seán, bem como seus pais já tinham perdido tudo. Casa, bens, seus cavalos. E por último, na maior inanição, suas vidas também. Outros amigos e vizinhos tiveram o mesmo destino. Quem não deixava o Eire, ficava ali para sempre debaixo da terra. Foram trágicos anos que aquela população passou.

 

 

 

 

No início da noite George e a esposa colocaram o que puderam e o que coubesse no pequeno carreto de apenas duas rodas. Colocou em local escondido, sob um falso assoalho, as poucas libras que conseguira receber. No bolso de sua jaqueta levava o necessário para pagar pouso e comida até chegarem a Dublin.

 

 

 

 

Quando estavam a olhar, pela última vez, a casa, as terras, a plantação arruinada, as árvores, o tudo que acompanhara suas vidas desde sempre, surge à sua frente, montado em bem ajaezado cavalo, a lúgubre figura do arrendatário das terras, o ignominioso representante dos aristocratas londrinos que se apropriaram do legado dos antepassados de George. Acompanhado, claro, de seus bem armados coiotes subalternos.

 

 

 

— Você deve apear já deste carreto e me dar conta das vendas de hoje – foi dizendo em autoritário e desdenhoso tom. – E a senhora dona também deve deixar de seu sossego e vir ao chão para que possamos procurar o que nos deve.

 

 

 

 

— Senhor, boa noite! – disse George, fazendo uma reverência diante do arrendatário. — O que pude receber pelo pouco que hoje consegui vender é o que trago comigo em minha algibeira.

 

 

 

Abriu sua jaqueta e dentro tirou algumas libras esterlinas que foi logo entregando, pensando assim livrar-se logo do problema. Mas o arrendatário, com um sorriso cínico mandou seus asseclas descarregarem tudo o que houvesse no carro. Vistoriaram toda o carreto. Abriram os sacos feitos de aniagem. Espalharam o pouco que a família portava pela estrada lamacenta. Misturaram livros e documentos com a sacola de uma galinha assada com farinha de batatas.

 

 

 

 

Riam-se como doidos a devorar o almoço que os Ryan comeriam no dia seguinte, jogando pedaços de peito e farofa pelo chão. Vasculharam item por item e não encontraram o dinheiro.

 

 

 

Não satisfeitos entraram na casa. De lá tiraram ainda o que George não pode carregar. Exasperado por não encontrar o que procurava saiu com sua turma, fazendo os cavalos escorcearem e levantarem massas de lama pelo ar. E uma ameaça para completar:

 

 

 

 

— Para onde vocês forem estarei no encalço até conseguir ver o meu dinheiro dentro de minha algibeira. Avisarei as autoridades em Dublin e podem esperar pelo pior.

 

 

 

Apesar de estarem com os nervos à flor da pele, precisavam, com calma e paciência, sob a tênue luz do lampião da rua, colocar seus pertences enlameados de volta para o carreto. Vendo o lastimável estado em que tudo se encontrava, desistiram de viajar naquela noite. Sua casa — ou o que restava dela —  apesar de totalmente revirada pelos facínoras, ainda seria melhor. Só na manhã seguinte conseguiram retirar a lama que recobria seus pertences. Com calma foram lavando, limpando. Colocaram livros, papéis e documentos no sol. Foram obrigados a comer os restos da galinha que os malfeitores deixaram jogados sobre o carreto. No começo da tarde, mesmo com a fome a lhes roer as entranhas, reiniciaram a viagem.

 

 

 

 

Não havia outra solução. Deveriam seguir para Dublin. A distância mais próxima entre a Irlanda e um porto na Inglaterra. Sabiam que a grande maioria de seus compatriotas tomara navios que se dirigiram à América do Norte. Assim como, seus irmãos mais velhos haviam feito quando perceberam o triste futuro que os esperava em sua terra nata. Não sabiam ainda qual destino tomar. Depois pensariam.

 

 

 

(Mais um trecho de um livro em construção)





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