Há preconceito nos olhares maldosos, nas sutilezas vocabulares, nas piadas, e em situações subentendidas
Sendo branca, oriunda de uma família cuja árvore genealógica é de origem caucasiana, morando no Sul do Brasil, em uma cidade em que poucos são afrodescendentes, cheguei à idade adulta sem ter consciência que o nosso país é racista. A primeira vez que refleti sobre isso foi quando estava cursando o Mestrado em Porto Alegre, onde uma parcela considerável da população é negra, e uma colega afro me relatou: “Maria, eu não gosto de ser negra, tenho vergonha da minha pele, do meu cabelo, da minha família. Se pudesse escolher, teria as bochechas rosadas como as suas”. Naquele momento, eu levei um choque, e, ingenuamente, pensei: “Como ela pode ser racista consigo mesma?”
Esse questionamento e julgamento acerca de minha amiga negra, que também me relatou sentir-se mal por causa dos olhares enviesados lançados a ela toda vez que saía de mãos dadas com seu namorado loiro de olhos azuis, palpitaram na minha mente por anos. Para mim, que nunca seria pré-julgada simplesmente porque meu tom de pele pudesse diferir do padrão pré-estabelecido, era inconcebível alguém desprezar sua própria cor. Só fui entender a complexidade do que estava por trás da confissão dela ao ler a obra “Na minha pele”, de Lázaro Ramos.
A partir de experiências pessoais, e mesmo fazendo parte de uma ínfima parcela da população negra que tem reconhecimento profissional, e tem voz e vez artística, ele relata que é muito difícil ser afrodescendente no Brasil, país em que o preconceito velado ou escancarado é recorrente:
Existe todo um discurso de que não há racismo no Brasil. Afinal, nós fazemos parte de um povo pra lá de miscigenado. Mas quem é negro como eu sabe que a cor é motivo de discriminação diária, sim. Um bom exemplo é blitz de ônibus. Em determinada época, elas eram bastante frequentes em Salvador. O curioso é que só descia negão dos ônibus. O cara branco era chamado de cidadão e eu virava menininho, garoto, moleque. Ou vocês nunca repararam na cor da pele de quem é “menor” e de quem é “criança” nos textos da imprensa, no vocabulário popular ou mesmo em pronunciamentos de autoridades? (RAMOS, 2017, p.49).
Há preconceito nos olhares maldosos, nas sutilezas vocabulares, nas piadas, e em situações subentendidas, como, por exemplo, o memoricídio, ou seja, o apagamento da história dos negros, e, por conseguinte, a negação de sua representatividade:
[…] boa parte da população branca do Brasil conhece bem “suas origens europeias e cultiva, com carinho e orgulho, o sobrenome italiano, o livro de receitas da bisavó portuguesa, a menorá que está há várias gerações na família”. Acho que todos nós concordamos com isso, não? Mas… como foi com os descendentes de africanos que aqui aportaram? A experiência do tráfico eliminou os registros dos lugares de onde eles saíram, redefinindo-os em etnias genéricas. Os traficantes fizeram os negros escravizados darem voltas em torno da Árvore do Esquecimento para que zerassem suas memórias, apagando assim o rastro de suas histórias. Os negros da diáspora passaram pela Porta do Não Retorno para que nunca mais sentissem vontade de voltar, foram separados em lotes onde se prezava a diversificação, justamente para que não se entendessem (RAMOS, 2017, p.65).
Também lembrei que minha colega mencionou que seu irmão, ao voltar do trabalho ou da Universidade, foi, inúmeras vezes, abordado pela polícia para revista, o que nunca ocorreu com o namorado loiro dela. Essa discrepância de tratamento entre brancos e negros é tão abismal que ela idealizou: “Se eu tiver filhos, quero que nasçam loiros, para não passar por esses constrangimentos”. Lázaro Ramos confirma a sua narrativa: “o menino negro que é apanhado pela polícia deve mostrar pronta humildade para que não seja confundido com um bandido antes que possa provar que não o é. Notaram alguma semelhança com o negro alforriado?” (RAMOS, 2017, p.81).
Para quem estuda História, é fácil entender o questionamento de Lázaro, de que a abolição da escravatura na verdade não exterminou o estereótipo de segregados. A questão proposta se amplia ao refletirmos sobre este excerto: “Quando é que um branco se dá conta de que é branco? Pensou? No geral, a autopercepção da etnia branca não existe. O protagonismo é dos brancos, então sua condição de branco não é um assunto. Isso é o “normal” (RAMOS, 2017, p.141). Realmente, é impossível não concordar com ele, quem é branco não é, por exemplo, julgado por sua cor, não é intitulado “ator branco”, “escritor branco”, como ocorre com os afros:
Um negro se dá conta da sua etnia a cada olhar que recebe (de desconfiança, de surpresa, de repulsa, de pena) ao entrar em um lugar. A cada vez em que se procura e não se encontra. A cada apelido na escola, que sempre tem a ver com a cor e, geralmente, agregado a um valor negativo. A cada vez que não é considerado padrão de beleza e a cada vez que se vê calculando como deve se portar ou o que deve dizer, porque não sabe como será interpretado. A cada vez que observa como sua palavra é desconsiderada ou considerada equivocadamente. É nos pequenos incômodos, para muitos inexistentes, que nos damos conta de que não é mera coincidência sermos a maioria nos presídios, favelas e manicômios (RAMOS, 2017, p.142).
Essa obra de Lázaro Ramos me fez entender o sofrimento de minha colega e os motivos que a levaram a proferir aquelas afirmações que, na época, julguei autossabotagem. Além disso, me fez confirmar a máxima de Millôr Fernandes, de que “O Brasil tem um enorme passado pela frente”, especialmente em relação à escravidão que mostra suas consequências nefastas em todos os momentos, setores e segmentos. E, para finalizar a resenha, mas não a problematização, deixo a constatação inicial do livro de Lázaro, que mostra claramente que o combate ao racismo é responsabilidade de todos, pois: “Para crescer, o Brasil precisa potencializar seus talentos, e o preconceito é um forte empecilho para que isso aconteça. Vamos buscar soluções efetivas para transformar essa situação?”