Minha irmã Avany


Avany, na juventude/Arquivo pessoal

Contava, toda prosa, ter sido ela a primeira pessoa a me ouvir dizer a primeira palavra

 

 

 

Tanto, e tão intensamente, ela viveu que nem sei onde se encontra o começo e nem qual seria a sequência exata para sobre ela contar. Emaranham-se na mente pedaços de vida, assim como o fio de uma meada que do centro se desenrola todo para fora. Qualquer ponto pode ser um ponto de partida.

 

 

 

Passagens que não recordo, mas que ela contava com tanta alegria. Era ela uma menina quando eu nasci. Dentro de meses faria 10 anos. Fazia de conta que eu era a sua boneca.

 

 

 

Não se conformava com os porquês de minha mãe não permitir que ela me levasse a passear em seu colo. Até o dia em que a permissão foi dada, contava ela, que até se perfumou com o extrato que mamãe escondia no fundo da gaveta. E assim feliz levou-me a passear na plataforma da estação ferroviária. Afinal, era ali mesmo que nós morávamos.

 

 

 

Contava, toda prosa, ter sido ela a primeira pessoa a me ouvir dizer a primeira palavra. Alguém a cumprimentou, enquanto passeava comigo em seu colo. E ao cumprimento de “boa tarde” teria eu balbuciado um “Tade!”. Se ela assim contava, ninguém jamais duvidou. Mesmo por eu ter seis meses de vida.

 

 

 

Mas lembro-me bem de minhas angústias quando a via arrumando a pequena mala de couro para retornar ao internato. Já é de uma época em que as imagens estão mais nítidas em minha memória. Do tempo em que não morávamos mais na casa da estação ferroviária. Andava como um rabinho, por toda a casa, em seu encalço. Ela nem podia arrumar direito as camas, as roupas. Quando dava um passo atrás pisava nos dedos de meus pés. Porque grudada nela eu andava.

 

 

 

Ela era a minha irmã Avany. Que sempre escrevi com um ípsilon no final.

 

 

 

 

Foi minha primeira professora de francês. Encaixei-me nas explicações que ela dava, nas férias, para meu irmão Adolpho Ariel, o Fito. Tinha até um caderninho e fazia questão que ela me desse notas.

 

 

 

Minha alegria quando, no terceiro ano do curso normal, ela já não era mais aluna interna no Sagrado Colégio. Como as aulas eram realizadas na parte da tarde, diariamente, tomava o trenzinho misto que a levava de nossa vila pata Canoinhas.

 

 

 

Formou-se na Escola Normal do Instituto de Educação “Sagrado Coração de Jesus” em 1943 e no ano seguinte já começou a lecionar na Escola Isolada Estadual de Marcílio Dias. E bem nesse ano eu fui estudar no Sagrado Colégio, como aluna interna.

 

 

 

Quando minha família adquiriu a Casa Barateira e a residência anexa à loja, do senhor Felipe Mansur, minhas irmãs tornaram-se professoras do Grupo Escolar “Almirante Barroso”. Foi por pouco tempo. Quando minha Nonna Thereza faleceu retornamos a Marcílio Dias e lá ela ficou lecionando até se casar.

 

 

 

Vieram os filhos. Só depois que Celso, o mais novo, já tinha uns 3 anos, resolveu retornar aos púlpitos escolares. Um retorno carregado de espinhos. Não era tempo de ditadura. Mas a política traçava os desígnios das pessoas. Não passou no exame da perícia médica. Ela era míope. Desde sempre. Considerada a melhor aluna de quantas já haviam trilhado os bancos do Sagrado Colégio. Mas, segundo quem a examinou, ficaria cega logo e seria um prejuízo para o Estado. Assim, por um simples olhar. Não havia aparelhagem e nem especialista em Oftalmologia em nossa terra.

 

 

 

Ela não se entregou. Procurou a Junta Médica Oficial de Joinville. Levou atestados de especialistas que lá foram melhor avaliados. E então, finalmente, sua nomeação saiu.
O estudo em nossa vila não se resumia mais a uma simples escola isolada. O velho prédio, em estilo Enxaimel onde, primordialmente, estava instalada a Escola Alemã foi demolido e naquele terreno foi construído um grupo. Não lá no fundo, tendo uma alameda de ciprestes que sob suas sombras ficassem abrigados os alunos em seus recreios. Não, derrubaram o velho prédio e puseram abaixo os ciprestes também. E o novo grupo foi construído rente à rua, rente à estrada, rente à poeira e rente ao ruído dos pesados veículos que por lá circulam.

 

 

 

Mesmo havendo vaga para uma professora normalista no grupo de nossa vila, na vila onde ela morava, enviaram-na para longe, para lecionar em uma escola isolada na localidade de Palmital. Impossível o ir e o voltar em todos os dias da semana.

 

 

 

Lá morava uma das filhas de dona Noêmia Rauen Romais, uma grande amiga e comadre de minha mãe. Único local mais próximo da escolinha em que ela poderia se hospedar. E casa de pessoas que eram de casa. Só que havia um pequeno detalhe. Na casa mal cabiam as pessoas daquela família. Nos fundos havia um galinheiro. Que depois de remodelado, em quarto foi transformado. Levou com ela sua filhinha Arcélia. Os três meninos ficavam com minha mãe. Aguentou invernos gelados e calores sufocantes. Aos sábados, depois que as aulas findavam, retornava para Marcílio Dias. E já no domingo à tarde seguia rumo ao Palmital.

 

 

Não sei quanto tempo durou esta peregrinação. Até o dia em que alguém viu o absurdo. O grupo de nossa vila precisando de professoras normalistas e uma normalista que morava na vila ser obrigada a trabalhar em local tão distante.

 

 

 

Foi então nomeada como professora e logo como diretora da Grupo Escolar “Manoel da Silva Quadros”. E todos os seus talentos em prol daquela escola ela colocou.

 

 

 

Começando por remodelar o pátio e impregnar o rígido estilo de educação e civilidade que aprendera com sua família e no Sagrado Colégio onde estudara.

 

 

 

Comprou uma encrenca danada com alguns neófitos recém chegados da capital do estado que foram contra uma das normas estabelecidas. A norma de que todos os alunos deveriam deixar os calçados nas varandas do educandário e colocar chinelos para entrar na sala de aula. Minha mãe costurou centenas de chinelinhos para que nenhuma criança ficasse com os pés no chão.

 

 

 

E as salas permaneciam limpas, sem barro e sem poeira a impregnar livros e cadernos.
Políticos queriam que se cumprisse a lei de que se tivesse merenda escolar. Não! Ela não era contra ter merenda escolar. Era contra a maneira como era preparada. No pátio. Dentro de uma lata de azeite de 20 litros legumes, verduras e algo mais eram fervidos em água. Sobre um fogo entre tijolos. Quem preparava a sopa precisaria de um banho urgente. Pelo pretume do carvão e da fumaça. E as crianças comiam aquilo em canequinhas de esmalte que traziam de casa…

 

 

O governo instituiu laboratórios de ciências e uma biblioteca nas escolas. No nosso grupo não havia onde colocar as estantes e os equipamentos. Os livros remanescentes da Escola Alemã estavam amontoados em prateleiras na sala dos professores e da diretora. O governo daria o conteúdo, mas não daria o continente. Então Avany falou com a comunidade. Conversou com os gerentes de cada setor da firma madeireira de Wiegando Olsen, com o pessoal da cerâmica, com cada comerciante, artífice o artesão de nossa vila. E conseguiu o montante necessário para construir duas salas onde a biblioteca e o laboratório foram, finalmente, instalados.

 

 

 

Em outros textos já falei de sua luta para que mais anos de estudo em nosso Grupo Escolar fossem instalados. Queriam acabar com o Quinto Ano do Curso Primário. Para fazer economia… Textos que já foram publicados aqui no JMais e que fazem parte de meu livro “Retalhos perdidos no Tempo”.

 

 

 

Valeu a pena tantas andanças. Num glorioso dia a comunidade de Marcílio Dias participava da celebração da formatura da primeira turma que concluía o curso ginasial no Grupo Escolar “Professor Manoel da Silva Quadros”.

 

 

 

Fez da horta escolar um ambiente de alegria. Conseguiu verba para construir um local decente para se preparar a merenda escolar.

 

 

 

No local onde funcionara a antiga escolinha isolada – em uma rua lateral, mais abaixo – foi instalado o Jardim de Infância “Marguit Olsen”. Porque muitas crianças de nossa vila já mostravam interesse em bem cedo frequentarem a escola.

 

 

 

E então surgiu a ideia de se formar um grupo de escoteiros. Partiu dela a ideia de se fundar este grupo tão atuante na história de nossa vila.

 

 

 

Sempre dizia que jamais quis ser professora. Que não era o seu norte. Mas que outra opção seria oferecida para as jovens de nossa terra nos idos dos anos 40 do século passado? Creio que Avany faria bem feito e perfeito qualquer trabalho ou profissão que tivesse abraçado na vida. Dizia ser apaixonada por Física, Química e Matemática.

 

 

 

Era exímia violinista. Foi ouvindo, outro dia, a Serenata de Schubert, em solo de violino, com acompanhamento de piano que resolvi escrever sobre as minhas irmãs.
Os quadros a óleo, pintados por Avany, enfeitavam as paredes de nossa casa. E devem estar enfeitando as de muitos lares por estes páramos por onde andamos. Os ovos de Páscoa por ela pintados eram verdadeiras obras-primas. O fundo em tons pastel todos nós ajudávamos a fazer. Com finíssimo pincel – que parecia ter apenas uma cerda – ela imprimia a sua arte em inesquecíveis silhuetas. Em linhas negras coelhinhos nas mais diversas poses, aves, insetos e outros bichinhos mais, bailarinas em pleno ar e tantas outras figuras, maravilhosamente desenhadas, faziam a nossa festa. Guardo, em uma nuvem de algodão, uma destas saudosas casquinhas.

 

 

 

Não era apenas uma diretora do grupo escolar de nossa vila. Era a mãe das professoras que com ela trabalhavam.

 

 

 

Já não era jovem quando foi cursar Pedagogia em uma Faculdade de União da Vitória. Com sua visão já bem deficitária, com descolamento de retina enfrentava a longa viagem até a vizinha cidade e retornava, de Canoinhas para nossa vila, em um jipe. O que deixava de cabelos em pé o oftalmologista que dos olhos dela cuidava.

 

 

Deu aulas de matemática para o curso de Administração em nossa velha Funploc. Os diplomas dos formandos foram por ela manuscritos em fina e artística letra gótica.
Também foi integrante do corpo docente do Sagrado Cotação de Jesus e do Santa Cruz. Sei que suas aulas de matemática deixaram saudades.

 

 

 

E ainda arranjava tempo para colaborar com minha mãe nas lides do restaurante da estação de nossa vila.

 

 

Até hoje fico abismada só em pensar como ela esticou as horas de sua vida fazendo uma pós-graduação em Administração Escolar. Descia, em ônibus, para Joinville, em todos os finais de semana. No decorrer da enchente de 1983 estávamos preocupados em casa. Ela saíra de Joinville. E nada de chegar. Apareceu na tarde de segunda-feira, em lastimável estado de cansaço. O ônibus chegou até perto da vizinha cidade de Mafra. Não conseguiu continuar. Retornou até São Bento do Sul e depois, via Pien, dirigiu-se até a Rodovia BR-116. Entrou em Campo do Tenente e tomou a direção de São Mateus do Sul. De lá rumou até as barrancas do rio Negro, na divisa com Três Barras. Novo impedimento. Retorna a São Mateus e segue até Porto União. Só então conseguiu chegar em Canoinhas, mesmo com a água, em muitos trechos, entrando pela porta.

 

 

 

Como era muito bem humorada ainda fez piada de tão angustiada situação, dizendo que viajara quase 48 horas, fazendo um tour por diversas cidades, pelo preço de uma simples viagem de Joinville a Canoinhas.

 

 

 

 

Era uma artista em tudo que fazia. Elaborava cardápios suntuosos e de um inigualável sabor para as celebrações de nossas ceias de Natal e Páscoa. Montava artísticos bolos para os nossos aniversários. Em um Natal montou, em pura massa preparada e confeitada por ela, maravilhosa vila natalina. Com casinhas, árvores, anjinhos e Papai Noel.

 

 

 

 

Quantos trajes meus foram por ela elaborados. Desenhava o modelo. Cortava e costurava. E com eles desfilei em muitas solenidades.

 

 

 

 

Sua saúde sempre foi algo a nos inspirar cuidados. Além de carregar em seus genes, a miopia familiar, instalou-se também o temível Diabetes mellitus. Lutou contra ele o resto de sua vida. Mas as consequências vieram. E seu pâncreas lesado mais problemas lhe trouxe.

 

 

 

Em seu leito, no Hospital da Unimed, em Joinville, ao lembrar-se das melodias que mais gostava ia cantando. Seu filho Sérgio gravou. Guardamos sua afinadíssima voz que ficou para a posteridade.

 

 

 

 

Ela não nos deixou. Porque sua aura permanecerá entre nós e sobre nós para sempre.





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