Meu bisavô irlandês e sua paixão pela bela índia a cavalo


Executava verdadeiras obras de arte em ferro, emoldurando assim entradas de sítios e chácaras e de muitas residências

 

 

 

Há muito, muito tempo, eu imaginava que um dia saberia, não apenas os nomes, mas, também, onde nasceram, onde viveram e o que faziam na vida os meus antepassados mais remotos.

 

 

 

Conheci apenas os meus avós. Maternos e paternos. Minha bisavó Angela Caellotto, veio para cá acompanhando sua filha Thereza, a minha Nonna. Não a conheci. Consta que foi uma as primeiras pessoas a ser enterrada no velho cemitério da Colina de Santa Cruz. Quando meu tio Pedrinho, irmão de minha mãe, faleceu, em 1931, já existia o cemitério da Colônia São Bernardo, minha vila. E as partes físicas de minha Noninha Ângela, que sob o solo não se desfizeram, em uma pequena urna, lá ficaram depositadas também.

 

 

 

Já falei sobre meu vovô da Lapa. Mas para eu poder escrever algo sobre a bela Luiza por quem ele se apaixonou e com quem se casou, preciso é que eu siga os poucos caminhos que meus pais contavam sobre ela.

 

 

 

Meu bisavô, Jorge Emples, pai de vovó Luiza era inglês, segundo minha prima Aline Dittrich Zappa conta em “Retratos”, um de seus livros. Mas eu gravara na memória que ele era um irlandês muito alto e de cabelos ruivos.

 

 

 

Vindo de além mar estabeleceu-se, de imediato, na Lapa, em um tempo tranquilo, sem muitas controvérsias políticas. Era tempo de império ainda. Exímio ferreiro, não apenas trabalhava com o trivial para bem manter os cascos dos cavalos e as engrenagens das carroças. Executava verdadeiras obras de arte em ferro, emoldurando assim entradas de sítios e chácaras e de muitas residências também. Era de sua lavra o grande portal que enfeitava a entrada do cemitério da Lapa.

 

 

 

 

Jovem ainda ficou deslumbrado ao ver uma bela índia, montada em seu cavalo, passar com sua família, pelas ruas da cidade. Não sossegou enquanto não descobriu onde viviam aqueles indígenas. Passaram-se os meses. Detalhes nunca nos contaram. Também nunca soube o nome desta minha bisavó. Apenas que era muito linda. De olhos meigos. De cabelos sedosos que escorriam pelas costas. E que tinham muitas terras.

 

 

 

 

As terras da família de minha bisavó começavam lá pelas bandas de Rio Negro e onde se sedia hoje a cidade de Mafra e, por muitos alqueires, estendia-se de lado a lado do que seria depois a estrada de ferro. Indo até um local que ficou conhecido como estação de Barracas. Só para se ter uma ideia o trem levava 50 minutos para fazer o percurso entre esta parada e a estação de Mafra. Provavelmente, terras sem documentação oficial que passaram a pertencer a quem construiu, anos mais tarde, a ferrovia.

 

 

 

E então nasceu Luiza. Nascida no dia de Todos os Santos, como Luiza dos Santos foi batizada. Difícil entendermos a vida livre e solta pela mata que era a vida feliz em que vivia minha bisavó. Não conseguiu viver sob um teto e entre quatro paredes. E nem com todos aqueles trajes que lhe cobriam o corpo desde o pescoço até os pés. E a pequena Luiza com seu pai ficou a morar.

 

 

 

Apenas soube desta minha bisavó que era uma exímia cavaleira. Que andava sempre pelos campos em desenfreadas cavalgadas. Certo dia, num galope em alta velocidade, como costumava fazer, algo sucedeu com sua montaria. O cavalo, a voar, alucinadamente, pelas pradarias acabou por dar de encontro em algum tronco de maior envergadura. Cavalo e cavaleira foram ao chão. E então, aos 107 anos de idade, com traumatismo grave em seu pescoço falece uma índia que fora muito linda, que fora a paixão de um jovem irlandês chamado Jorge Emples.

 

 

 

 

Minha avó Luiza já era casada com meu avô Antônio Dittrich quando a calma e bucólica Lapa se transformou.

 

 

 

A turbulência logo chegaria naquelas terras. Meu bisavô lutou, como oficial, na Revolução Federalista de 1893. Amigos ficaram em lados opostos. Pior ainda os entreveros entre os que já tinham suas altercações antigas. Já eram de muito tempo que se digladiavam meu bisavô e um professor que era monarquista e pertencia ao grupo dos maragatos. Em tempos atrás tinham sido amigos. Dizem que um rabo de saia teria sido a causa de nem mais se olharem, que dirá sentaram-se para um papo e um chimarrão.

 

 

 

 

A guerra era fratricida. Irmãos a degolar irmãos. Denunciavam-se vizinhos. Denunciavam-se antigos companheiros que juntos se sentaram nos bares da vida para prosear e beber uma taça de vinho.

 

 

 

 

E a degola oficializou-se. Entre os perseguidos para perder a cabeça em tão trágica situação encontrava-se o professor, já arqui-inimigo de nosso bisavô.

 

 

 

 

 

Meu bisavô morava em uma bela casa, em estilo colonial típico da região, em uma grande propriedade, que se localizava na antiga estrada que ligava a Lapa a Rio Negro.

 

 

 

 

Estava ele, numa destas tardes de chuva fina e gelada, despreocupadamente, montado em seu cavalo, indo a trote curto, em direção à cidade, quase saindo da pequena estrada que findava exatamente em sua propriedade, quando vê, ao longe. um vulto a correr, desabaladamente.

 

 

 

 

Reconhece, de imediato o professor. Estanca o animal. Olham-se com firmeza. Com o mesmo rancor que há anos minava o interior de ambos. O professor, monarquista, maragato. Meu bisavô, oficial do lado oposto.

 

 

 

 

Pergunta ao desesperado transeunte, chamando-o de antemão, de desgraçado, o que estava fazendo, numa estranha correria por aquelas bandas.

 

 

 

 

E o professor, sem titubear tudo conta ao inimigo. Meu bisavô apeia do cavalo. Entrega-lhe as rédeas. E ordena-lhe que se vá, no maior tropel possível na direção que Jorge Emples lhe sugere. Recomendou-lhe ainda que quando se sentisse em um local, com toda a segurança, que deixasse o cavalo à solta. Ele encontraria o caminho de volta para casa.

 

 

 

 

E continuou, a pé, pela estrada, em direção à cidade da Lapa. Não demorou muito a encontrar o pelotão que perseguia o professor. Como meu bisavô era oficial e deles conhecido, bateram continência e perguntaram-lhe se tinha visto um infeliz de um maragato correndo a pé por aquela estrada. E ele lhes respondeu, sem titubear.

 

 

 

—Nem sei mesmo se era uma pessoa, e nem se era maragato, mas vi um monte de roupa molhada a correr por aí.

 

 

 

Claro que queriam saber para que lado tinha ido o coitado do professor. E meu bisavô indicou-lhes o lado oposto.

 

 

 

 

Finda a revolução continuavam os dois, ele e o professor, sem nem sequer se olhar. No fundo a mágoa antiga persistia. Coisa de irlandês, provavelmente. Porque ao ser indagado sobre os porquês desta mágoa tão antiga não ter fim, respondia sorrindo que não valia a pena viver sem ter alguém na ponta da lança da memória, mesmo que fosse para espezinhá-lo em pensamento.

 

 

 

Viu muita tristeza naqueles dias. Viu a degola de muitos conhecidos. Viu muitos companheiros tombarem a seu lado. Sob tiros de fuzis ou golpes de baionetas. Começou a tomar uns tragos de cachaça nas bodegas da vida quando estas dantescas visões à memória lhe assomavam. Montado em seu cavalo, aprontava algumas artes, causando pequenos distúrbios a pessoas mal resolvidas, em um tempo em que a cidade se aquietava e se encolhia aturdida, depois de tantos meses de guerra.

 

 

 

 

A bebida era o seu refúgio para minimizar as trágicas pinturas que visualizava em sua mente. Trágicas imagens que presenciara durante aqueles tétricos dias em que passara nos campos de batalha.

 

 

 

 

Cantarolava ou solava em sua harmônica de boca as canções celtas mais antigas enquanto seu cavalo levava-o de volta para casa que ficava no caminho da velha estrada que levava a Rio Negro.

 

 

 

Mas os encarregados de manter a ordem começaram a implicar com suas costumeiras idas aos bares e de lá sair cantarolando. Segundo meus pais, certa vez ele teve que assinar um termo de bom viver, diante do delegado e do juiz. Um termo de bom viver em que prometia e jurava nunca mais tomar um gole de bebida alcoólica.

 

 

 

Certo dia o juiz encontra com ele sentado, em uma mesa de um conhecido bar da cidade. Com uma garrafa de uma bebida espirituosa ao lado. E à sua frente um prato de farinha e uma colher.

 

 

 

A autoridade nem pestanejou. Foi direto à mesa de meu bisavô. Sentou-se a seu lado e em ríspido tom lembrou-lhe da promessa, escrita de próprio punho, assinada e com aval de testemunhas de que ele jamais tomaria sequer um gole de bebida alcoólica.

 

 

 

Calmamente perguntou ao juiz se por acaso ele estava vendo algum copo na mesa. Se tinha visto um copo sendo levado à sua boca. E que a promessa, o juramento era para nunca mais beber. Ele estava comendo, num prato fundo, um mingau frio de cachaça com farinha. E de colher.

 

 

 

 

Por seus feitos, sua luta e seus atos de bravura, tem seu nome gravado, ao lado de tantos outros, no Panteão dos Heróis da Lapa. Um herói lapiano, nascido nas terras onde viveram os Celtas, a Irlanda.

 

 

 

 

Alguns fatos aqui narrados tiveram por fonte o livro “Retratos”, de Aline Dittrich Zappa, Editora Juruá, Curitiba, 2003.





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