Passei pela vida a estudar em vários colégios antes de entrar na Universidade, mas o que gravado ficou mesmo, e bem fundo, no recôndito da memória, foram os dias passados no internato do Instituto de Educação “Sagrado Coração de Jesus”, de Canoinhas, nome longo e pomposo e que para nós continua sendo sempre O Colégio, o nosso Colégio, o Colégio de minha infância, infância onde entrei menina e fiquei até os meus quinze anos.
Por mais que eu fale, conte, narre, descreva a rotina de nosso dia-a-dia, entremeada com as nossas múltiplas anti-rotinas, jamais tudo será escrito. Porque cada uma de nós, as alunas internas que por lá passaram, teria as suas histórias para contar, cada qual com a vista do seu próprio ponto, com o olhar do seu próprio ângulo.
Os dias corriam céleres dentre tantas coisas a se fazer. De manhã, as aulas. Após o almoço, um curto recreio apenas para apaziguar a mente. Recreio passado ali dentro mesmo nos varandões de nossa casa onde se podia jogar peteca, as nossas fabulosas petecas feitas de palha de milho e penas de galinha, claro, as longas penas das asas e as do rabo dos galos.
O jardim era O Jardim. Um Jardim de sonhos, um jardim a que Irmã Maristela dedicava suas horas de lazer. Jardim encantado que começava a se estender desde o chão com as graciosas miosótis e as “mimosas violetas escondidas entre a folhagem de ramagem tão gentil”. Um pouco acima floriam gérberas, margaridas, copos de leite, lírios. Depois os ramos espinhentos ostentando as mais belas e coloridas rosas. Mais alto, em arbustos outros, camélias e jasmins encantando a visão e o olfato com seus maravilhosos aromas. Flores que depois iriam para os vasos deixando a nossa capela e as nossas salas de aula sempre coloridas e aconchegantes.
Os canteiros eram margeados por fileiras compridas de vermelhos tijolos colocados, um por um, em forma diagonal. E, assim, vermelhos e enfileirados marcavam o limite entre as flores e a verde relva dos caminhos.
Era um jardim poético, o Jardim de Irmã Maristela, que depois de meu tempo Madre foi também. Foi nossa professora de Língua Portuguesa e entendia e muito tanto de gramática como de literatura e nos brindava sempre com a leitura dos nossos grandes clássicos. E ainda era uma das preceptoras das internas, junto com Irmã Nízia, em meu primeiro ano no Sagrado Colégio.
E desse recreio passado nos jardins ou nos varandões e em todos os demais recreios, sempre um sino a nos chamar, avisando que chegada era a hora de, solenemente, nos instalarmos em nossa sala de estudos para colocarmos as nossas lições em dia.
E nunca era pouca coisa. Estudar os pontos de geografia, de história, de religião. Era lição de casa de português, de aritmética. Em nosso primário curso não se falava ainda em Matemática. No curso Fundamental, que viria depois, estudava-se, separadamente, Aritmética, Álgebra e Geometria. E havia ainda um texto de nosso livro de leitura que deveria ser bem estudado para, no dia seguinte, ser lido em sala de aula, sem gaguejar ou sem as consagradas pausas onde era vírgula e onde era ponto.
Esta sala de estudos era especial. Uma grande sala onde coubessem todas as internas. Carteiras enfileiradas sem corredor no meio. Havia duas portas, uma dupla, lateral, que dava para o corredor e uma menor, simples, nos fundos, que dava para as escadarias. E em uma das paredes, oposta aos janelões, uma grande prateleira que começava quase ao rés do chão e tinha uma altura especificamente adequada à altura das alunas da chamada “ala das grandes”. Sua largura se estendia entre as portas.
E cada interna tinha um lugar para colocar os seus pertences. Um lugar previamente demarcado com seu nome. Ali se colocavam os trabalhos manuais, como bordados, tricôs, crochês com os respectivos fios e as respectivas agulhas e o que mais as carteiras não comportassem.
Bem no alto, acima da grande prateleira, uma enorme faixa, artisticamente bordada com imperiosa ordem escrita:
“Um lugar para coisa e cada coisa no seu lugar”.
E se assim não fosse, a arrumação só poderia ser realizada no decorrer de algum dos recreios…
Esta era a nossa sala de estudos, o nosso aconchego, um lugar com direito a divagações. O nosso canto silencioso de todas as tardes, de um pedacinho do tempo de antes do dormir, em todas as noites e de algumas horas em todas as manhãs de domingo e de dias santos.
Nesta sala de estudos escrevemos as nossas adolescentes e líricas histórias. Programamos os dias que estariam a nossa espera. Firmamos amizades. Choramos as mágoas conjuntas. Fizemos os nossos deveres. Escrevemos as intermináveis páginas repetindo a mesma frase do que não mais deveria ser feito ou do que deveria, por obrigação, se fazer. Ali escrevemos imaginários convites de casamento com o nome de colegas e seus namorados. Ali muitos rabiscos meus, em forma de redações foram escritos em troca de flores bordadas em uma toalha que se assim não fosse jamais ficaria pronta.
Por todas estas coisas eu afirmo que jamais tudo será dito ou escrito sobre o nosso Colégio. Muitas águas, ou melhor, muitas linhas ainda irão rolar até que eu consiga esgotar, pelo menos, as minhas lembranças.