Não encontrei um título para esta história real.
Espero que a imaginação de vocês o faça.
Tornou-se um vulto meio abstrato a vagar pela casa. A vagar pelo seu esquecido jardim já cheio de ervas daninhas. Esse seu jardim onde ele ficava, por horas inteiras sentado na relva macia debaixo da grande árvore frondosa a contar para ela de seus amores, de suas andanças, de seus sonhos.
O quarto dele estava ainda assim como da última vez que viera para casa. Uma parede com a pintura inacabada. Assim como a sua vida, os seus sonhos.
Aqui o enorme baú com todo o seu mundo nele guardado.
Ali, a estante com os livros que iam ficando arquivados, ano após ano, em sua escalada em busca do último ano. O álbum de formatura recebido agora. A fotografia dele mostrando o seu olhar profundo, místico, aguado, sua barba torneando o queixo, seu sorriso de enlevo, na última página, dizendo da saudade, da dor da ausência e do adeus dos colegas que ficaram ao colega que se fora.
Um arrepio percorreu-a inteirinha e as suas lágrimas salgadas, quentes, desceram de mansinho, a princípio, avolumando-se depois num crescendo constante, até surgir aquele grito angustiado, como rugido de fera tentando acudir o filhote caído… “meu filho,… meu filho…”
E a água que de seus olhos vertia era um sangue rolando e toldando a imagem que estava em suas mãos…
Gestos amigos contornando pausas, confortando angústias…
Casa cheia o dia inteiro todos os dias. Cheia sempre. Uma cidade inteira mostrando a ela um carinho e uma ternura imensa. O campo vindo em romaria trazer-lhe apoio.
Mas ela queria, tão somente, uma solidão sozinha. Para rever pedaços dele encravados nas paredes de seu quarto.
Ela era miúda e menor ainda me parecia naquele desconsolo todo. E ela era grande nos atos todos que a tornaram tão amada por tantos. Ela era boa, ela era meiga.
Sempre levara pão aos famintos, água aos sedentos, agasalho aos sem teto e palavras de amor aos tristes que encontrasse.
Mas agora ela queria a solidão somente. E deixava que a multidão em sua casa ficasse.
Só não ficava na casa o Senhor que saia com o sol raiando, rumo aos campos. E se deixava ficar por lá o dia inteiro, com seus cismares, a sós, num profundo silêncio, em meio a sua grei, em meio a sua plantação.
Sempre quieto, não conseguia balbuciar a palavra, esboçar o gesto de amor que a deixasse menos triste…
Houve uma noite em que sentiram, os dois, um vazio maior ainda penetrando pela casa, invadindo paredes, impregnando móveis.
E foram reviver o filho nas pequenas bugigangas embrulhadas num baú todo cheio de saudade.
Cartas suas lá estavam. Anotações de aulas. Cartas das namoradas. Cartões de amigos. Os poemas dele. Um conto iniciado. Tantos pequenos grandes papéis vulgares, comuns, de valor tão precioso.
Sorriram muitas vezes em meio às lágrimas dela, em meio às angústias dele.
De repente, naquele amontoado de tudo surge um cartão de Páscoa, com letra miúda, de mulher, letra indecisa, dizendo, sozinho, um mundo de coisas.
“Meu amor… Eu e seu filho desejamos a você uma Feliz Páscoa”. E um nome de mulher embaixo, apenas um nome, a data e a cidade…
E então neles se acendeu uma nova luz em busca deste neto.
Nunca soube se o encontraram.