Frustrações de um amigo


Largaram-me pelas livrarias. Amontoaram-me em prateleiras e estantes mil. Deixaram que a poeira do mundo se acumulasse em meu dorso. De brancas folhas, de lisas folhas, amareleci no correr dos tempos sem que mãos amigas, carinhosamente, tentassem me afagar, sem que ávidos olhos me captassem e sem que sedentos cérebros me absorvessem.

Quantas e quantas vezes, por muitos, fui vislumbrado de soslaio. Com desprezo, até. E mesmo com raiva por incumbirem-me de árduas pesquisas escolares.

Mas desde o meu nascimento estive sempre a espera de vocês. Que viessem me ver, pegar-me, apalpar-me, folhear-me. Eu queria sentir mais que simples mãos a me envolver. Eu queira os olhos de vocês. Eu queria todos os olhares do mundo. Que me vissem por inteiro. Que mentes me captassem em todos os sentidos. E que todos compreendessem as mensagens todas que há milênios estou lhes trazendo.

Já fui envolto em aristocráticos ares na tentativa de adentrar em luxuosas residências. Revestiram-me em capas douradas e de coloridos matizes. Fui produzido até em papel brilhante, com letras em formatos maiores para que se tornasse mais fácil a minha entronização nesses ocos templos de culturas vazias.

Nestas esnobadas condições cheguei a passar meses e meses encaixotado, até que se encontrasse um canto onde eu seria o deslumbramento visual, onde eu preencheria espaços em estantes de carvalho ou jacarandá.

Mas as mãos e os olhos que eu queria para perto de mim continuaram tolerando-me à distância, exibindo-me apenas como peça rara, quase de museu, um mero elemento decorativo.

E eu lá, guardado ainda, na crença de que a minha presença traria cultura e conhecimentos aos meus possuidores. Mas eu era apenas uma aparência frustrante que muitos donos meus exibiam a amigos.  Eu estava, lá pelas estantes, apenas como um figurante, sabendo que soluções para problemas estariam encravados no meu bojo. Que viagens maravilhosas poderiam ser encetadas dissecando-me por inteiro. Tudo ali, tão perto, tão perto, ao alcance das mãos.

E desprezado continuo.

Se acaso as pessoas se imiscuíssem naquelas frases e parágrafos todos que eu carrego comigo, creio que o entendimento do mundo seria mais fácil. Até a leitura do jornal de cada dia seria melhor e mais rápida se todos já tivessem se acostumado comigo. As conversas tornar-se-iam mais amenas porque o fluir das palavras e a construção das frases sairiam como água límpida que escorre de fonte primeva.

Tenho a certeza de que esta convivência comigo faria de todos sábios e doutos. Cartas agora de teor incompreensível tornar-se-iam meras cartilhas. E os textos meio ininteligíveis, meio obscuros que grassam por aí teriam fim e tudo o que se escrevesse teria sentido e por todos seria entendido.

E aquilo tudo que tantos gostariam de exprimir em palavras para tantos … aquelas frustradas tentativas de tentar convencer alguém de alguma ideia … aquelas palavras que a mente encabulada não encontra jamais …

Tudo, tudo lá guardado comigo, todos os segredos desses vocábulos todos. Tudo lá guardado, bonitinho, luxuosamente encadernado, como objeto decorativo, gradeado, às vezes, até. Tudo atrás daquela confortável poltrona onde você se espicha para melhor desfrutar os seus programas de tevê ou para matar o tempo com os inebriantes joguinhos de seu computador.

Mas, já fui também encontrado até sem conteúdo e sem miolo. Um mero e enganoso objeto decorativo de paredes onde só um aparente costado reluzente aparece e nada mais.

Para que se conseguisse atingir novas fatias da população condensaram-me em livros de bolso, a preços bem populares. Vibrei!Fiquei extasiado! Agora sim! Agora serei encontrado por todos! Quantos ávidos por leitura e de minguados tostões conseguiriam colocar seus olhos e suas mãos em mim.

Senti então uma outra derrocada. Percebi que ao permitir que eu estivesse ao alcance de milhares, inferiorizaram-me também. Porque fui colocado no mesmo nível de publicações de literatura inferior, de literatura de porão, de literatura sem mensagem dignificante alguma. Publicações que nada acrescentariam, onde frases incorretas estavam sendo atiradas a esmo e cuja leitura mais deturparia o entendimento. Degenerei na ganância de medíocres editores.

Mas, continuo tendo amigos. E amigos que me querem ao lado daqueles que procuram cultura em amareladas e ásperas brochuras acessíveis aos minguados bolsos de ávidas mãos, ávidas mentes e ávidos olhos.

Amigos que poderão me encontrar em feiras de livros, nos sebos e bazares de usados e até em bancos de praças naquelas trocas tão benfazejas ao meu ego.

Não desisto. Continuarei minha luta encantando os que não me trocam por uma mesa de jogo, por uma conversa maledicente, por um programa qualquer de tevê e agora por tantas frivolidades outras que nada acrescentam a ninguém.

Terei certeza de que estes lucrarão por contarem comigo a seu lado. E eu os elevarei aos píncaros do conhecimento humano e eles estarão acima, muito acima do comum dos mortais.

E foi assim que me falou um cidadão do mundo chamado Livro, há quase meio século. E hoje ele esteve aqui e sussurrou-me mais alguns assuntos e palavras que acrescentei.

 

(Texto modificado de um original publicado no Jornal “Barriga Verde em 06/11/1973)





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