Fantasmas dançantes nas noites do deserto


Então este amor não era ainda o Amor?

 

 

Viveu uma vida na esperança de encontrar o Amor. Percalços infindos. Desilusões que pareciam destruir sua alma. Tempos depois era como se nada tivesse acontecido. Então este amor não era ainda o Amor? Os anos voaram numa infinda busca em que se jogava, por inteiro, em suas lides, em seus estudos.

 

 

 

Até o dia em que o Amor lhe acenou de longe. Nos meandros mais fundos de sua memória sentia que era o esperado Amor de tantos séculos. E a razão a dizer-lhe não. Mas o Amor estava sempre a seu lado. E ela entendeu que os laços espirituais eram laços eternos. E viveram juntos momentos de infindáveis ternuras.

 

 

Um efêmero tempo de ternuras. Invejosos demônios alados ou anjos que a queriam para si levaram-na para os espaços siderais. A tumultuada vida do Amor levou-o precocemente para viver em outras galáxias. E ela ficou só. Tendo apenas as lembranças de poemas que embalaram tantas noites de amor.

 

 

 

E nos momentos todos a lembrança e a saudade do Amor invade a sua alma. Tenta fugas meteóricas para não mais ver os fantasmas dançantes que brincam e choram com ela nas noites de chuva, nas noites de fogo, nas noites de neve, nas noites de vento, nas noites de tempestade.

 

 

 

Entra nas mais fantásticas caravanas até onde a sua mente a pode transportar. Até onde o seu físico errante consegue chegar. Tentando enterrar a tristeza da alma que por muitas horas a consome partiu com amigos turbulentos para uma aventura no deserto.

 

 

 

Não se lembra como chegou naquele imenso oásis. Entardecia e rodeavam uma incipiente fogueira. Buliçosos amigos envolvem-na com os mais deliciosos manjares. Com melodias que beduínos solam, tão docemente, em cimitarras, violinos, rebabs, buzuks e flautas. Com o néctar das mais puras uvas. Com o licor das mais doces tâmaras.

 

 

 

Num repente ela percebe que não conseguiria fugir de suas lembranças, de sua saudade.
Recolhe-se para o interior da grande tenda. E pelos fundos ela some. Enreda-se entre as palmeiras que rodeiam o encantado recanto. Encontra a fonte com límpidas águas que, sem cessar, emergem, em fluxos, das profundezas do deserto.

 

 

 

Macio tapete relvado sobre a areia úmida. Acomoda-se. Encosta-se no tronco de uma palmeira. O som das melodias soladas nos instrumentos dos beduínos perde-se naquele crepúsculo a caminho. Andara muito. Não imaginara que um oásis teria uma tão grande extensão. O silêncio, perturbador. Que consola também. As águas da fonte a correr a seus pés. E o murmúrio do seu borbulhar a embevecê-la.

 

 

 

Mergulha neste misto de angústia, saudade e embevecimento e não percebe que o sol já afundara atrás das planícies arenosas distantes. Resta, perto do horizonte, a pequena luz de uma Vênus brilhante a mais lhe falar de saudade.

 

 

E no mesmo instante, no outro lado do mundo ela surge. Redonda, linda, grávida de luz. E o clarão do luar estende-se pela planura imensa. Seus olhos colados na luz que o céu envia. Nenhuma nuvem a navegar pelo espaço. Estrelas começam a cintilar com intensidade crescente.

 

 

 

Nesta semiobscuridade eles começam a aparecer. Movem-se ao longe, pelas areias. Como se um redemoinho fizessem-nos rodopiar. E começam a sua dança. Que nunca cessa de ser dança. Que nunca cessa de rodopiar. Alvos fantasmas vestidos de luar. E dançam no ritmo da música que as areias, em seu eterno atrito, fazem soar.

 

 

Estática fica a olhar os seus fantasmas que, dançando, tentam chamá-la para, junto com eles, dançar também.

 

 

 

Seus pés a receber o afago das águas que da fonte céleres correm. Seus ombros desnudos, o afago dos ventos que no deserto soluçam.

 

 

 

Noite calma. Calma demais. Nenhum farfalhar das palmeiras que a envolvem. Ramos entrelaçam-se. Como num hino de amor, junto às águas. Mudos, inertes. Parecem dormir e a sonhar sob o esplendor do luar.

 

 

E os fantasmas, com seus olhos tristes, de longe a olham. Porque até o rodopio cessou. Estáticos, na distância.

 

 

 

Mas ela sabia. Porque sempre foi assim. Não adiantava fugir. A saudade chama, como sempre chamou, os seus fantasmas. Assim como a placidez, o silêncio e a calmaria prenunciam a chegada dos vendavais.

 

 

Foi num repente que as tranquilas águas da fonte mudam seu borbulhar. Respingos mais fortes, impelidos por um vento, que começa a soprar, molham seu corpo.

 

 

 

As fímbrias das palmeiras começam a solar como cordas de violino a invadir a noite. Os seus ramos balouçam-se, abraçando-se com frenesi.

 

 

E os fantasmas reiniciam a sua dança. Rodopiam ao som dos violinos dos ramos das palmeiras, ao som dos violinos das areias que freneticamente se movem.

 

 

E o luar que a envolvia, num átimo some. Desfazem-se as constelações na abóboda que escurece.

 

 

 

E então mais perto eles chegam. Aproximam-se do espaço que separa as areias do frescor do oásis. Parece que seus mantos são de areia. E agora a dança é mais intensa. Porque movida pelo furor dos ínfimos grânulos que o simum não cessa de fazer rodopiar.

 

 

 

No alto ribombam tambores. Sensação de que todas as forças do universo estão conjugadas para, num ímpeto, degolar as palmeiras a seu lado. Sensação de que todas as forças do universo estão conjugadas para, do fundo da fonte, arrancar as águas e fazê-las explodir pelo verde em seu redor.

 

 

Estática agarra-se ao tronco da palmeira que a acomoda. O furor do vento não a atinge. Seus fantasmas dançam ao seu redor. Envolvem-na com seus diáfanos mantos e olham-na com seus olhos tristes.

 

 

 

O furor do vento aumenta e os fantasmas, da cor da areia e com areia vestidos envolvem-na em sua dança. Que não cessa de ser dança e que não cessa de ventar.

 

 

 

Um rugido imenso a seu lado. E então ela ouve, mais que vê, o tronco de uma velha palmeira, esfacelar-se e estender seus galhos pelo chão. E sobre os verdes ramos os fantasmas deleitam-se e continuam a sua dança.

 

 

 

Não há chuva. Não há relâmpagos e nem trovões. Apenas o vento, incessante vento. Seria o encontro dos gigantescos simum e siroco tentando destruir o oásis? Tentando destruir os fantasmas dançantes das noites do deserto?

 

 

Embalados por estas circunvoluções os fantasmas continuam a sua dança. Que não cessa de ser dança. Que nunca chega ao fim.

 

 

 

Fuga? Para que fugir destes fantasmas se mesmo na imensidão de um deserto sem fim, diante de seus olhos, eles continuam a dançar?

 

 

Os fantasmas entrelaçam-se nos ramos e nas fímbrias das palmeiras que balançam em torno dela. E entre estas tênues ramagens ela vê os brilhos de muitos olhos. Ela sente um brilho maior. Seriam os olhos do Amor a sorrir para ela entre estas fímbrias que parecem violinos a planger suas cordas em meio aos ventos da noite?

 

 

A madrugada chega e a encontra ainda no mesmo lugar, abraçada a um tronco de palmeira, com os olhos marejados de lágrimas.

 

 

 

A dança dos fantasmas da noite do deserto desvanece-se aos poucos. As areias deitam-se no chão. Não mais ventos a fazê-las rodopiar.

 

 

Seus olhos continuam inundados de lágrimas quentes que se misturam com as águas da fonte que em suas faces o simum lançou.

 

 

 

É de saudade esta lágrima que escorre de dentro de seu eu? Seria ela, a saudade, que a faz ver estes fantasmas que insistem em perambular pelas névoas de sua mente, brincando com ela nos momentos mais diversos de seu diário caminhar?

 

 

 

Não importa onde vá. Os seus fantasmas aparecerão sempre para cravar mais fundo o punhal de uma saudade. Ou seria para dizer-lhe que está viva?

 

 

A madrugada chega e ainda a encontra recostada no tronco da palmeira amiga. O corpo envolto com as finas areias que o fustigante vento nela deixou. Vestes enrodilhadas e encharcadas pelas águas da fonte que o fustigante vento em seu corpo jogou. Olha o infinito espaço que a envolve. Uma língua da lua aparece em meio às negras nuvens de areia que persistem no espaço além.

 

 

Face molhada pelas águas da fonte. Face molhada pelas salgadas águas que de seus olhos não cessam de rolar, mira o infinito e pede às estrelas que lhe digam por que estes fustigantes ventos que degolam as palmeiras dos oásis dos desertos não degolam e não destroem também esta saudade?





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