Fantasmas dançantes das noites de violoncelos plangentes


Obra de Claude Monet/Reprodução

Torno a olhar através da vidraça e apenas há escuridão lá fora

 

 

Estou aqui a olhar, através da janela, o verde de meu jardim. O verde que não se esvai neste inverno que já se prenuncia. Um verde sem o colorido das flores. Porque agora é o tempo em que elas se escondem para, mais belas ainda, vicejarem na próxima primavera.

 

 

 

Estou a olhar, através da janela, as nuvens que no leste refletem os últimos fulgores de um sol que neste triste dia se despede. Por que, repentinamente, este entardecer tornou-se assim tão triste? São coisas de uma alma que divaga em um passado distante. Que a euforia que há tanto tempo sentia já não volta mais. Por mais que eu tente ouvir a música que elevava a alma para páramos bem lá no alto, fulgurantes e azuis, em meus sentidos aflora apenas o tanger de um triste violoncelo a solar o Adágio de Albinoni.

 

 

 

Não sei para que galáxias esta melodia me transporta. Embora triste, não há um sofrer que dilacere a alma. Porque são lembranças de tempos felizes, em que no enlevo, sem dor, voávamos em busca do paraíso.

 

 

 

 

Em poucos dias as noites afigurar-se-ão tão claras e límpidas como se o sol voltasse a passear pelo espaço. Hoje eu contemplo esta côncava canoa, brilhante e luminosa, lá fora, através de minha janela. Emoções agigantam-se e envolvem todo o meu ser.

 

 

 

 

Por que estas cortinas físicas teimam em se fechar, tentando proibir o meu doce enlevo de vê-la sumir atrás das árvores que ainda enfeitam o meu sorriso?

 

 

 

Torno a olhar através da vidraça e apenas há escuridão lá fora. Por que as ciumentas nuvens escondem-na agora? O céu que era límpido, de um hediondo negrume se cobriu. Restam os clarões das luminárias. Reflexos que inundam a minha velha acácia dourada. Com seus cachos resplendentes em todos os galhos, em todas as fímbrias, em todos os ramos. Uma profusão inebriante de um ouro que me transporta para os píncaros emoldurados de serras encantadas. Onde ouço o trinar de passadinhos como se noite não houvesse. Onde o tanger sofrido das cordas deste violoncelo plangente que me faz chorar e me faz sorrir, num paradoxo interminável de cânticos ora tristes, ora de encantamentos.

 

 

 

Sinto que é o instante em que preciso fugir, não sei se de mim, se deste chão, se desta melodia. Porque esta lua que de mansinho, cresce, de instante a instante, traz com ela aquele séquito que me atordoa e me esmaece em cada noite deste meu insano viver.

 

 

 

O crescente da lua no infinito e o crescente desta melodia que me transporta para outras galáxias não conseguem deixar este séquito de fantasmas, que noite após noite, seguem os passos de minh’alma.

 

 

 

 

E como em todos estes momentos tristes eu sabia que lá estariam eles a me olhar. Através destas vidraças, que agora nem a luz da lua me mostram mais, eles vieram.

 

 

 

 

Apoderaram-se da minha dourada acácia e parecem sorrir de meu infortúnio, de minha dor, de minhas lágrimas.

 

 

 

Por que eles teimam em apavorar-me em uma noite em que a lua parecia tão bela? Lá do alto eles me olham. Espalham as nuvens escuras que empanavam o brilho da minha canoa no espaço distante. Acomodam-se nesta lua crescente como se em um macio sofá se deitassem. Sorriem para mim. Divertem-se com as minhas angústias? Com a minha solidão?

 

 

 

Em torno desta obnubilação transitória eles rodopiam. Como se em um balé mágico estivessem a volutear e a fazer a sua dança, que nunca cessa de ser dança e que nunca cessa de me obnubilar.

 

 

Aproximam-se, lentamente, como sempre se aproximaram. E ali, defronte à minha janela, sobre os ramos da minha acácia dourada, sob os raios da luz de uma esmaecente lua ainda crescente, sob a luz dos lampiões da rua, os meus fantasmas, repentinamente, tangem seus violoncelos também. E com eles, dançam sobre os ramos, sobre as ramagens, sobre a copa de minha mais amada árvore. Da que me traz a luz do sol e a luz da lua em todas as noites tristes de tempestade e solidão.

 

 

 

 

Vergam-se os galhos com o vento que brinca com as nuvens. E sobre eles os meus fantasmas brincam comigo.

 

 

 

Entre o balanço dos galhos, em meio aos mantos destes fantasmas que não cessam de se infiltrar em minha mente eu vejo um sorriso amante. Seria o sorriso de meu amor a me olhar através destas ramagens todas? Então os meus fantasmas não vieram apenas para rir de mim? Vieram, como o meu amor sempre poetizava. Vieram sorrir para mim.

 

 

 

 

E então eu vi o meu amor envolto também entre as ramagens da minha acácia dourada, à luz de uma lua que no alto estava a sorrir.

 

 

 

Mas as ciumentas nuvens escuras que sempre as luzes turvam, empanaram a noite que parecia ser linda. E as imagens, em meio às ramagens, fugiram…

 

 

 

Os meus fantasmas não se desvaneceram em meio à escuridão. Eu sabia que eles ali, por longo tempo, ficariam a me olhar. E a me perturbar.

 

 

 

Em instantes eles reiniciaram a sua dança. Um balé transcendental. Em meio às ramagens. Em meio à névoa que ameaçava cobrir minha janela. Em meio às douradas flores que sempre me deram a ilusão de luar e de sol em meio ao meu encantado jardim.

 

 

 

Voluteavam seus mantos como se, em uma dança triunfal, guardassem um segredo transcendental.

 

 

 

Os sons dos violoncelos tornavam-se mais fortes. As cordas tangidas pelos arcos infiltravam-se por entre os galhos dos ciprestes, dos pinheiros, da minha eterna roseira de brancas rosas.

 

 

 

Não eram apenas os mesmos fantasmas de sempre a me atordoar. Eram muitos. Multiplicavam-se á minha frente. Tangendo seus violoncelos. Imiscuindo seus sons em minh’alma. E muitos outros, muitos mais a encetar sua eterna dança. Mística dança ao som do eterno Adágio de Albinoni. Mística dança que nunca cessa de ser dança e que nunca cessa de me angustiar.

 

 

 

 

Os fantasmas, lá fora, olham-me com seus olhos tristes. Como sempre me olharam. Sorriem. Mas sorriem para me consolar. Dançam, pois também querem me ver dançar. Brindam com suas taças. Que tangem com os sons do mais puro cristal. Tilintam-nas nos vidros de minha janela.

 

 

 

 

Os meus fantasmas portam segredos que eu ainda não decifrei. O rubro liquido, num repente, está a meu lado. Elevo meus braços e toco, com o cristal que está entre meus dedos, o que à minha frente eu vejo. O som de seu tilintar se enovela com as cordas dos violoncelos. Com a melodia de Albinoni. E o vinho escorre pela vidraça num enlace com a névoa que o meu jardim envolve.

 

 

 

E o meu amor lá fora. Recostado sobre um ramo de minha acácia florida em dourado. Chego perto. Encosto meu rosto em seu rosto. Acaricio suas mãos. Inerte o meu amor lá está. Inerte, como estátua, continua. Não sorri. Apenas lágrimas de seus olhos eu vejo escorrer nesta noite triste.

 

 

 

Triste noite de um luar a caminho. Triste noite de um solitário violoncelo a solar o Adágio de Albinoni.

 





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