Em desenhos e cores… só a lembrança ficou


Ganem e chuva 016No sereno da noite molhada em luar estou deixando teu canto encantado rumo ao infinito…

… no retângulo de luz tua silhueta e atrás um mundo de fantasia, de cores, de magia.

Dentro de mim tua voz, lembrando de valsas ouvidas nos bosques de Viena, o bulício, o ruflar de pés na areia entremeando a grama recheada de círculos floridos em todos os tons do arco-íris…

… mostrando fotos de viagens rumo a outros meridianos nossos, sempre com os mais deslumbrantes crepúsculos do entardecer entre riachos cantantes ou espumas congeladas de ondas do mar batendo nas encostas dos rochedos.

… relembrando a velha casa de madeira, a escada e a varanda, o toca-discos rodando sinfonias e concertos…

…os cristais de gelo se fundindo com o cristal dos copos e no líquido âmbar, quase cristalino, como em um prisma refratando os raios de um sol crepuscular, um arco-íris dançante…

…e calado ouvias minhas mágoas debruçadas em teu ombro.

…relembrando, muito depois, quando em teu aconchegante atelier derramavas teus sonhos de amor, tuas angústias, tuas dores…  e o ombro era o meu.

… relembrando a Quinta Sinfonia ou o Concerto para Violino de Tschaikowsky, modulados em piano, violinos, fagotes, celos, trompas, harpas, vistos e ouvidos em êxtase, enquanto meus olhos se perdem pelas paredes carregadas de telas, óleos, guaches, aquarelas, crayons e toda essa arte que as tuas mãos e a tua alma, e somente elas, criavam…

ganem chuva, Nonna e Ganem 004Lá, em frente, o começo, suave, em azul de céu mesclado a azul de mar… o verde nosso tão amado teu das ervas e das heras ladeando e encimando toscas cabanas e suas cercas caboclas, tudo tão Canoinhas.

Depois girassóis, ah! os teus girassóis fulgurantes, girando o mundo, múltiplas flores, a “Erveira-Mater” premiada… o imenso azul de um outro céu mudando a paisagem de mar com um quase nada de areia só para dosar com um quê de amarelo o grande poema colorido.

Teus passos na chuva…

 

“gosto de vagar à noite, caminhando no molhado…

lavando a alma, enxaguando a mente…”

 

E enquanto ouço o ruído das rodas na água da rua vou me lembrando dos poucos momentos que passei vendo tuas ágeis mãos mesclando tintas, trocando pincéis, montando imenso mural… quieto, mudo, preocupado por não me dar atenção a fim de continuar a obra… o teu eu gentil não liberando o teu eu artista e eu saindo devagarinho, te deixando absorto por intermináveis horas, pintando, pintando, pintando, sem parar, sem parar, sem cansaço, sem fome, sem sono, com infinitas horas ainda pela frente até a assinatura final.

Alegraste a vida de tantos pequenos pacientes em nossa humilde enfermaria pediátrica quando naquelas paredes inseriste com tua mágica mão um belo painel com figuras de histórias infantis.

Coloriste nossa vida, menino-amigo, tingiste nossa cidade, colocaste tua alma à deriva em tantos retângulos, juntaste todas as formas e todos os tons possíveis, onde poemas aderiram e douraram o cotidiano cinzento nosso!

Salões em festas deliciosa e artisticamente por ti elaboradas. Trazias poemas figurados de que céus para enfeitares assim a vida?

Conseguias sempre, com os mais simples objetos e as mais campestres flores, montar um paraíso nos mais toscos ambientes. Lembras dos milhares de beijinhos multicores em cestos e peneiras de palha e taquara, entremeados com as painas trazidas das campinas? E arrematadas com inúmeros vasos de verdes avencas que ventavam sob o efeito mágico de um oculto ventilador? Tudo iluminado em lusco-fusco, com luzes escondidas, deixando apenas um necessário ponto iluminado para o toque final, como sempre apregoaste.

E ainda vejo as tuas hábeis mãos excluindo adereços, retirando panos, tudo o que achavas não condizente com os trajes que surgiam ante os teus olhos. E o estilista inato, que também habitava o teu eu, fazia com que outra deslumbrante musa surgisse após o teu mágico toque.

 

Por que esta fumaça ante meus olhos sempre que eu vejo mais um poema teu em cores acabado?

Houve um dia que foi muito especial porque reiniciavas a caminhada para a qual vieste e o nosso aperto de mãos refletiu a ânsia incontida dos dias tantos passados em branco à espera do milagre que, enfim, floresceu.

E então começaste a trabalhar, insanamente, com projetos tão grandiosos para cobrir de arte e com arte toscas e caiadas paredes de um mundo que pouco vê e pouco atingia o teu mundo.

E acumularam-se as obras de pintores notáveis aumentando a cada dia mais o teu já magnífico acervo.

… de novo reconheço o meu menino-amigo, cúmplice de tantas lágrimas e sorrisos compartilhados.

Mas, quando este lindo tempo que parecia não ter fim, apenas se programava, num ruflar de asas, partiste.

E te vejo alçando um voo, igual gaivota de plumagem cada vez mais branca, mais branca, mais translúcida, na tentativa de superar o teu próprio infinito…

A tua silhueta contra o retângulo de luz no aceno do até amanhã vai diminuindo…

Amanhã retornarei, amigo, ao teu canto encantado e mais uma vez alçaremos nossos voos, falaremos de céus estrelados e afastarás as cortinas para vermos a lua nascer no teu jardim.

 

(Nota: Em março de 1993 o jornal “Correio do Norte” prestou uma linda homenagem ao meu amigo Zezé Ganem (*) e às palavras que lá escrevi, outras mais agregadas agora foram.)

 

(*) José Ganem Filho,

Artista plástico.

Nasceu em 26/03/1946.

Faleceu em 23/04/1992.





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