… Em busca de outro caminho


Um fim de tarde guardando no ar o peso de um grito que tenta explodir e trazendo com ele a incógnita, a expectativa de um punhado de amigos.

Lá, sentados, na sala de decisões, circunspectos, tranquilos, heroicos, abnegados, os donos de uma situação.

Lá, sentados, tranquilos, resolvendo, como num julgamento imortal da vida e do destino dos outros.

A presença deles naquela hora e naquele local, não era aquela presença regular, sempre pedida e quase nunca atendida para soluções de importantes problemas da casa que dirigiam.

Não eram donos da entidade, mas se julgavam os donos da vida e do destino dos que nela trabalhavam.

Dirigentes por um momento, por uma fase, como haviam sido antes ou poderiam ser no amanhã que viria. E sentiam-se na obrigação de zelar por essa moral tão pouco zelada entre as quatro paredes de sua consciência.

Um fim de tarde angustiado, com pesadas e grossas nuvens, com os amigos sufocando o grito na garganta.

A reunião terminara e ninguém ficou sabendo das resoluções tomadas.

 

Foi engraçado até porque o outro dia amanhecera sem chuvas. E à noite até houvera luar. Um dia cálido, inexpressivo e quieto. Brusco, com poucos, muito poucos pedaços de azul no céu.

Foi engraçado, sim, porque ninguém viu a chuva e todos se atrasaram culpando as ruas e as estradas enlameadas. A pequena sala, sem janelas, situada no interior da grande construção, às escuras, foi o motivo para quebrar o gelo com um “Boa Noite” em plena manhã. E um papo esticado, sem graça, se prolongava, a espera que alguém trocasse o fusível queimado.

Um atraso prolongado e a conversa na salinha girando em torno de tudo, volteando, volteando para não cair no assunto que estragara muitas noites, muitos dias e muitas horas, de muita gente.

Resolveram pedir um cafezinho. A luz retornara. O trabalho todo, em todos os setores, à espera.

Ela até deixara a marca de seu batom na xícara de café, quando viu o chefe entrando, café mais engolido que tomado, na vã tentativa de evitar a pergunta fatal. Café ruim engolido sem gosto que lhe tirara o sabor do que havia tomado em casa, às pressas. Já saíra atrasada. Esqueceram-se de chamá-la. E ela se esquecera de acordar. O amanhecer quase a encontrara desperta ainda, pensando e ruminando nos supremos juízes que se haviam sentado no supremo trono para fazer seu julgamento glorioso. Havia pedido ao chefe que lembrasse aos ilustres senhores Aquele que há dois milênios dizia “Quem for sem pecado que atire a primeira pedra”.

E assim deixou o emprego onde começara quase menina. Onde começara a trabalhar para ajudar a alquebrada mãe no sustento da casa, no sustento da família, no sustento dos irmãos pequenos ainda. E era isto que ela sabia fazer. E era o serviço que amava. E todos os que ela atendia tinham sempre um sorriso de agradecimento pela sua suave presença, pelo toque quase imperceptível de suas mãos em todos os cuidados. E o que ali ganhava era pouco, muito pouco para suprir a falta do pai no amparo da família.

Então sempre havia um convite para um jantar na churrascaria, para um baile, para uma boate e sempre a necessária recompensa para a sobrevivência. Era uma moça morena muito bonita de longos e sedosos cabelos negros e de olhos abissais também negros. E a vida não a perdoou. Os ilustres senhores donos de sua vida, de seu emprego não a perdoaram.

E assim passou seus dias navegando entre a multidão fantástica.

Não sabia realmente o que queria, o que sentia. E extravasou um dia pelo elo de cadeias recortadas num caminho sinuoso a insinuar as evidências demonstradas.

E assim passou seus dias. Numa indefinível tristeza inexpressiva e inexplicável.

Cansando-se e exaurindo-se a procura do algo indefinido que ela não conseguia enxergar na densa neblina em que se amalgamava.

Caminhou um dia para além dessas fronteiras de sua mente. E depois nem soube afirmar e nem dizer o que sentira. De um tropeço a outro ficava perdendo, aos cachos, às pencas, os tesouros que guardara.

Não saberia nem mais dizer se o adeus que dissera um dia teve algum sabor.

E agora? Começar um outro caminhar. Alongar a vista em busca de outros horizontes. Subir a escarpa. Controlar as mágoas. Procurar o bálsamo. Mas onde?

E uma voz submersa em sua memória a empurrava em busca de um trilhar mais leve. Uma voz que foi ficando cada vez mais forte conseguiu fazer com que o seu eu vibrasse mais intensamente. E novo ânimo encontrou.

Sarjetas imundas ficariam para trás.

Monturos de imundo lixo ficariam para trás.

Serpentes molesmentas ficariam para trás.

Odores insuportáveis ficariam para trás.

Sentiu-se invadida de estranho pensar e caminhou mais lentamente já com olhos desanuviados. E começou a vislumbrar estrelas e conseguiu entrever um céu azul para mais além da estranha fumaça a que estava acostumada.

Passos indecisos já não cabiam mais em seu caminho. Retornou na trilha tortuosa para um recomeço sem turbulências.

Pés enfiados em sua sandália com alto solado de madeira faziam estranha e intensa ressonância na calçada umedecida.

O tumulto e a barreira dessa rua sempre cheia que tanto a irritara deixou de existir. Como se a vislumbrar em meio a tanto bulício rostos sorridentes, olhares límpidos, olhares coloridos, olhares de amor, olhares de pessoas que ela imaginara já nem existir.

Seus passos já mais firmes, mais compassados, já não tímidos, fizeram-na adentrar a igreja aberta e vazia.

O silêncio quebrado por música de órgão fê-la enlevar-se para muito além de tudo o que a sua pequenez e covardia até há pouco conheciam.

Sentou-se no último banco, na última fila e enfiou o rosto ainda belo em suas magras e gélidas mãos.





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