Eu vejo este céu muitas vezes brumoso e cheio de nuvens. Mas a chuva não vem
A poeira da estrada, longa estrada, sinuosa e estreita estrada ainda está infiltrada em meus olhos, em minha boca, em minhas entranhas. Eram tantos os buracos e tantas as pedras que ainda sinto meu corpo inteiro a se mover em círculos.
Mais de mil quilômetros rodando assim nesse chapadão sem fim, sem árvores e sem sombras até chegarmos a uma grande cidade. Lá ficamos por poucos dias. Até que se completasse a burocracia nos cartórios e registros de terras. Meu pai queria entrar em nosso novo território, embora pequeno, com todos os documentos em mãos.
Foram bons dias de descanso. Embora ficássemos acampados fora da cidade, ao lado de nosso caminhão, eu pude apreciar os últimos resquícios de civilização antes de embrenharmo-nos mais trezentos quilômetros mato adentro.
Senti o prazer de me despedir de uma sala de cinema, de um salão de cabelereiro, no qual podei minhas melenas. E ainda adquiri mais alguns instrumentos e demais materiais necessários para o que eu mais gostava de fazer. E imaginava neste mister continuar…
O sol escaldante a debulhar-nos em suor. Somente a esperança de um futuro melhor aqui nesse imenso cerrado, nesse fim de terra, foi o impulso que nos trouxe. E antes desses mais de mil e trezentos quilômetros de chão duro, outros mil quilômetros de asfalto deixamos lá no sul.
Aqui estou eu, no último reduto, escrevendo à luz amarelada de uma lamparina fumarenta.
Tenho uma luz de sol imensa a espelhar-se ao meu redor em todo o correr do dia. Mas ela me sufoca inteirinha dentro de meu novo trabalho. Novo! Apenas muda o local, muda a feição da casa. O meu novo velho trabalho. O único que sei fazer por aqui. Além de espelhar pelos brancos papéis os meus desabafos de todos os dias, lá no sul eu fazia algo mais. Sentia-me útil. Não fora difícil aprender o delicado ofício de atender pessoas doentes naquele pequeno hospital onde entrei quase menina ainda. Amava o meu trabalho.
Imaginava lá ficar por toda a minha vida. Já concluíra um minicurso de Auxiliar de Enfermagem e o ginasial também. Tinha outros sonhos. Tinha. Até o dia em que meu pai me convenceu de que lá sozinha eu não poderia ficar e que ele e meus irmãos precisariam de mim aqui. Homens por uma vida ligados às lides campeiras, nada sabiam dos cuidados que uma casa requer. E aqui estou. No meu novo e velho trabalho. Fazendo o que gosto. Atendo uma que outra pessoa que precisa de algum curativo, de que lhe indique algum remédio para as suas agruras físicas. Na vila que dista uns poucos quilômetros de nosso rancho há uma pequena farmácia. Com alguns bons medicamentos até.
Noto apenas que as pessoas são diferentes e pareço distante. Sou estranha, forasteira. Olho-me no espelho e vejo uma face encovada, seca, sem o frescor da brisa que soprava no sul.
Estes meus longos cabelos negros estão incomodando. O sol e a poeira não gostam dele. E até a água é difícil para lavá-los sempre.
Eu vejo este céu muitas vezes brumoso e cheio de nuvens. Mas a chuva não vem.
Meu pai e os manos sempre estão mais para o interior ainda, derrubando o cerrado e preparando a terra. A terra com que tanto sonhamos. A terra que virá trazer os frutos desta luta de agora. E eu os vejo tristes, desanimados. Parecem até arrependidos dessa nossa brusca guinada de vida.
Vendemos tudo no sul com a esperança nesse verde novo. O nosso recanto de lá era lindo, conhecido, amado. Mas cansado. Meu pai dizia que a colheita não compensava o trabalho do ano, dia após dia. Vivíamos à espera do milho dourado de espigas gigantes.
As notícias aqui espalham-se depressa. Mesmo contando as longas distâncias entre uma fazenda e outra. É o que eles chamam de Rádio Peão. E comecei a atender muito mais gene do que eu imaginava. Agora já passo um bom tempo a fazer curativos e a pensar feridas. São peões com ferimentos de lâminas de enxadas e de foices. Alguns são acidentes de trabalho. Outros, brigas mesmo. Que se sucedem em todos os sábados à noite. Porque é o dia em que recebem o pagamento semanal e vão logo para as bodegas da vizinhança das estradas em busca de um divertimento que termina em minha sala de curativos.
O dia em que minha vida começou a mudar tinha sido bem tranquilo. Até então! Meu pai e meus irmãos estavam na lide e levaram suas marmitas para não perder tempo no vir e ir. Arrumei o que precisava ser arrumado dentro de casa e na minha salinha de curativos. Descansava na rede. Meio dormitando, porque eu sempre levantava muito cedo para preparar a comida na fresca da madrugada.
Não pressenti a chegada deles. Vieram de mansinho. Sem ruído. Algo me fez abrir os olhos. E então eu os vi. Assustei-me e dei um pulo, pondo-me em pé em instantes. O meu salto foi tão abrupto que ao observar melhor notei que os visitantes também haviam se assustado com a minha reação.
Um deles aproximou-se de mim colocando as mãos para cima. Como a dizer que vieram em paz. E falou no seu linguajar arrevesado:
—Oivará... Dona, nóis precisar de seu trabalho lá longe na nossa Oca.
Mal conseguia abrir os olhos para melhor vislumbrá-los. Era uma tarde de sol e eu dormira na rede que ficava sob duas frondosas árvores. Aos poucos pude distinguir quem eram os meus visitantes.
O que falava estava com os adereços habituais de sua tribo e usava um calção curto e uma camiseta sem mangas. Os demais, penachos e tangas apenas.
—O que está acontecendo?
—O curumim da filha do chefe não quer nascer. Ela tá se esvaneceno. Diz que foi embarrigada por um branco que pegou ela à força, oivará.
—Moço —não sabia como me dirigir ao jovem índio à minha frente —este assunto é muito sério. Está longe de meu alcance. Eu não sou médica. Sou apenas uma pessoa que faz alguns curativos e injeções. Precisam levar a jovem para um hospital. Para fazer um corte na barriga dela para tirar o nenê, o curumim…
—Oivará, nóis levamo maué em nosso jipe. Por Tupã, perlomeno, vai lá por os olhos na pobre menina.
Todos me olhavam como se eu fosse Iara, a rainha das águas, a salvação de sua ocara. Tinham olhos brilhantes com a agonia neles espelhada. Cheguei a ver um mar de lágrimas aflorando em suas pálpebras. Em mim também começaram a fluir.
Eu havia ajudado os médicos de minha cidade, lá no sul, em muitos partos difíceis. A maioria das mulheres que chegavam às nossas mãos, em nossas noites de plantão, parecia que traziam em seu ventre bebês que já conheciam o caminho da luz. Pariam com muita facilidade. Era só esperar que às nossas mãos eles chegavam. As complicações os médicos resolviam. Mas eu sempre estava ao lado. E as nossas médicas e os nossos médicos nunca pouparam explicações.
Mas atender a uma mulher em trabalho de parto, uma índia que estaria parindo o filho de um branco… Era algo que me roía por dentro. Lembrava-me da história da índia Diacui. Que morreu ao dar à luz. O pai era um branco, o sertanista Aires Câmara Cunha. Imputou-se a tragédia às diferenças raciais. E estas lembranças turvavam-me a mente enquanto juntava o que imaginava ser necessário para um evento fadado a não se realizar.
Um breve bilhete aos meus deixei sobre a mesa da cozinha e embarquei no jipe rumo ao desconhecido.
Não demoramos muito. A aldeia não era tão distante. A cena era triste. A pobre moça já sem forças. Pela graça de Tupã apenas uns laivos de sangue e as secreções naturais de um trabalho de parto. Algo precisava ser feito. Nem precisei pedir água fervente e lençóis limpos. Tudo estava lá preparado. Arrisquei-me a fazer o que já fizera sob o olhar de quem havia me ensinado. Calcei uma luva e tentei o toque. Mais nervosa e apreensiva do que toda a tribo que rodeava a oca, a cantar e a dançar, implorando a ajuda dos seus ancestrais.
Percebi, de pronto, que o tamanho da cabecinha não seria o empecilho. Apenas não rodara. Com a manobra que as médicas e parteiras de meu hospital lá do sul haviam me ensinado consegui fazer a cabecinha do curuminzinho ficar em posição correta. Mais alguns minutos e ele apareceu, até que chorando vigorosamente.
Apliquei o oxitócico que havia levado. As velhas índias acorreram para abençoar o pequeno ser. Enquanto eu tentava dizer algumas palavras de como a moça deveria ser cuidada ouço um tumulto a se formar no terreiro lá fora.
Inopinadamente, entram na oca meu pai e meus irmãos. Com suas espingardas e facões nas mãos. Prontos para me libertar do que pensaram ser um rapto.
Mas ao perceberem a jovem puérpera deitada na rede, amamentando já seu bebê, estancaram, de súbito. Nem precisei explicar o ocorrido. Comemoramos juntos o bom êxito e voltamos para o nosso rancho.
Depois desta aventura, quase todos os dias encontrávamos em nossa varanda as mais diversas frutas que a floresta produzia. Também deliciosas iguarias que, sabíamos, só os índios tinham o dom de fazer. Os melhores pedaços de carne de animais selvagens eram trazidos para a nossa mesa. Era a gratidão de uma tribo inteira.
Continuei visitando a ocara. Com as velhas índias aprendi o valor terapêutico de muitas ervas e as técnicas para o preparo delas em forma de chá, de infusões ou de emplastros. Aprendi macerá-las, moelas e até extrair extratos e tinturas para usar como medicação oral.
E o jovem índio —que mal falava a nossa língua quando viera me buscar para aquele quase trágico atendimento—, continuou a frequentar a escola. Muito aprendeu. Chegou a se formar numa escola técnica na cidade grande que ficava muito longe dali.
Voltou cheio de ideias novas. Mas jamais abandonou as suas raízes. Achava estranho vê-lo ao lado de meus irmãos em quase todos os dias. À tardinha vinha ao nosso rancho. Conversávamos muito. Eu continuava a atender as pessoas como vinha fazendo quase desde o dia em que aqui chegamos.
Um dia estávamos olhando a lua cheia a despontar atrás da floresta. E então ele me falou que era muito triste passar uma vida, sozinho, vendo a lua nascer. Pegou suavemente em minhas mãos, encostou seu rosto junto ao meu.
E assim estamos hoje aqui. A floresta no entorno já não é mais a mesma. Mas a lua, sim. Continuamos aqui, na mesma varanda, com nossas mãos unidas, nossas faces coladas sentindo a saudade dos nossos filhos que estão lá longe, na capital. Alguns estudam para deixar nossa terra mais bonita. Outros para cuidar da saúde de nosso povo. Porque somos todos um povo só. Não importa a raça, de onde viemos ou o que fomos. Importa é renascer a cada dia. É jamais cruzarmos os braços e sempre nos darmos as mãos.