Desabafos perdidos no tempo


Como os fios de muitas meadas enrodilhadas, desfilamos nossos dias entre a multidão. Pessoas que passam despercebidas ao nosso olhar e aos nossos sentidos, pessoas outras que ao nosso lado são figurantes de todas as horas e muitos outros e muitas outras que ao nosso lado apenas se sentam para tentar desfiar suas angústias.

Dentro de um carro parado nas esquinas da vida, sob brisa amena ou olhando a chuva a escorrer pelo para-brisa a nossa frente, histórias foram sendo semeadas em minha mente. Histórias de quem tinha a certeza de que uns atentos e imensos ouvidos ali estariam para ouvir e lábios selados, acorrentados e amordaçados jamais se abririam para adiante jorrar o que só o silêncio deveria conter.

Mas, as mãos não eram atadas, as mãos fremiam em torno de uma caneta que rabiscava pelos brancos papéis contando histórias de amores inacabados, de amores frustrados, de amores abandonados.

E, assim, dentre estas tristes histórias cheias de mágoa, que me foram contadas, entre quatro paredes ou na solidão de um carro, ouvindo os clássicos da fossa de nossa popular música brasileira e sob o barulho sincopado das gotas de chuva que batiam nas janelas e no para-brisa eu fui captando os momentos líricos que encheram os brancos de meus papéis.

Entre eles encontrei o que hoje, neste espaço, eu repasso:

 

Eu jurei não falar mais em ti. Jurei para todo mundo que já havia te enterrado. E que já eras apenas um vulto abstrato envolto na neblina. Jurei, sim, jurei para todo o mundo, mas bastou a tua presença aqui neste fim de semana para que eu mergulhasse no caos outra vez. E aqui estou, chorando, sem te ver.

 

Eu sei que as escaladas todas para os labirintos mais complexos não conseguiram envolver a minha mágoa.

Eu sei que o tentar enlear-me nas mais diversas teias de aranhas não conseguirá extinguir no meu eu que era todo feito em poesia, o tom que me causou aquele fim tão rude e tão cruel.

Eu pedira, quando tudo ainda eram poemas e sussurros de amor, que o fim, quando chegasse, fosse macio, como o crepúsculo meridiano esmaecendo nos campos e colinas. Que fosse como sorrisos no ar ouvindo na saudade apenas as lembranças da amizade mais linda que já houvera.

E não sei…

… abruptamente te julgaste no mais covarde dos direitos de arrancar as raízes profundamente encravadas…

… e as raízes sangraram. E a sua rubra seiva não serviu sequer para irrigar a rude e ressequida terra. Foram cinzas atapetando o velho solo  e nem mais sequer uma relvinha ali brotou…

… é, eu não sei.

E não entendo.

Foi tudo tão drástico, tão bárbaro, tão angustiante, tão desesperadamente contrário àquele teu modo de viver e de ser que eu só poderia imaginar o poder de forças terrificantes agindo sobre o sonho bom que um dia nós sonhamos.

Depois… depois, covardemente tentaste colocar sobre outros ombros toda a culpa da tua insensatez.

E agora os fatos se consumam. Estás em outra vida. Tudo, amigo, tudo muito diferente daqueles sonhos tão docemente sonhados e acalentados há tanto tempo.

Ouço as melodias de antes, as melodias que embalaram nossos sonhos e fico a pensar que as coisas concretas do mundo são realmente as que valem para aqueles que não sabem ver no luar, no crepúsculo, nas gotas de chuva, no cantar dos passarinhos, nas neblinas azuladas o verdadeiro sentido da vida…

Ouvindo aquelas músicas que te faziam vibrar a meu lado, ouvindo o farfalhar embalante de uma palmeira à beira-mar… eu ainda ouço a tua voz, suplicando, alucinadamente, para que partíssemos juntos para os infinitos sertões onde desprotegidos esperavam pelo nosso amor.

É engraçado imaginar como a tua poesia, o teu sonho, durou apenas o curto espaço de ouvir uma sarcástica e contundente voz a te reduzir à triste condição de um covarde sem vez.

Sabe…

… eu não sei se fiquei mais magoada com a tua brusca retirada cabisbaixa ou por ter, enfim, compreendido que aquele que se elevou a meu lado, voltou a ser o eterno covarde-fantoche que tantas outras vezes já se curvara a uma voz diabólica…

… eu não sei…

… e ainda procuro nos espaços as respostas…

… eu ainda procuro, desesperadamente, por um “porquê”.

Talvez este “porquê” chegue um dia explicando tudo e me traga apenas uma sonora gargalhada. Sim, uma sonora gargalhada a debochar de mim… de minha crença em pensar que fosses gente… de minha ilusão em crer que te ajudei a subir uns poucos degraus. De minha ilusão em imaginar que pudesse fazer de ti aquilo que a tua inteligência sozinha não conseguiria fazer.

Mas a tua fraqueza e a tua covardia jogaram-me contra um muro de pedras onde eu me quebrei.

E meus sentidos embotados nem conseguem mais lembrar o rumo dos céus esverdeados que embevecidos nós olhávamos.

E ouço as melodias que embalaram nossos sonhos e o farfalhar das palmeiras na praia deserta. E ainda te vejo querendo viver o infinito na rota dos que precisam de nós. E bastou apenas uma rouquenha voz para derrubar todos os castelos. Bastou uma voz que ferisse os teus ouvidos e o teu eu para que a tua fraqueza se consumasse.

… e eu ainda não sei o “porquê”…

Mas eu sei apenas que eu jamais saberei o porquê de tua saída de minha vida sem que vivêssemos aquilo que fosse possível se viver.

Mas eu sei também que esta vida é apenas uma breve passagem e que aquilo que nos cabe aqui passar tem as suas razões de ser.

Nossos erros passarão, nossas angústias passarão e outra aurora há de surgir, não importa quando. Mas ela virá, trazendo-nos os “porquês”. Trazendo-nos as merecidas chicotadas . Ou nos trazendo os tons maravilhosos de céus invisíveis agora.

E não importarão as autoritárias vozes.

E não importarão as ameaças de corações crestados pelo sal das frustrações.

Nada importará se noutra aurora que há de vir, nós merecermos nosso encontro, ele virá.  Sem chagas, sem feridas e sem mágoas.

Nós nos encontraremos para aquele aperto infinito de mãos, para aquele abraço cheio de saudade, para aquele beijo que rejuntará os nossos pedaços estraçalhados que ficaram perdidos pelos caminhos.

E se assim for, eu sei que terá valido a pena a tentativa daquela doce ajuda em te reerguer.

E esperarei por esta aurora, não importando o que se passará até que ela chegue.  Porque a infinita distância que nos separa desta aurora servirá para nos moldarmos ainda mais, para mais amigos e mais amantes podermos dar de nós para um mundo cheio de amor.

 





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