Como desenhos que o vento desfaz…


A água escorrendo no chuveiro e aquele assobio sincopado e monocórdico em melodia sempre igual, demonstrando o seu desesperador estado de espírito.

E ela, no quarto ao lado, olhando o céu cinzento de um entardecer de agosto.

O mar não se mostrava amigo e batia furiosamente nas encostas dos rochedos. O bater das ondas, a água despencando do chuveiro, o assobio intermitente misturavam-se num irritante prenúncio de algo sinistro e trágico.

E ele saiu do banho, sussurrando ainda aquela mesma e interminável melodia. Vestiu-se. Nervoso, patético, de blusão branco, dizendo que precisava andar a sós pela praia deserta.

Ela, tentando ajudá-lo em seu desespero.

E ele queria tão só uma fúria interior e solitária.

Vestindo mais uma jaqueta branca, sorriu num esgar, murmurou entre dentes “pareço um vestal” e saiu, atônito, desesperado, desorientado, num crepúsculo que ela jamais esqueceria.

Deu a entender que o regresso seria breve e ela adormeceu entrevendo as últimas luminosidades do dia.

Acordava às vezes e vislumbrava uma claridade que já vinha das luminárias distantes a enfeitar a noite e a desfazer as últimas esperanças de um retorno ao tempo passado, um passado tempo de tão pouco tempo.

Como num sonho, mais pesadelo que sonho, percebeu o som próximo de uma porta se abrindo e de alguém entrando. Alguém que trazia a história, uma trágica desculpa que seria o que de mais cruel e de mais doloroso que ela já tivesse sentido em sua vida.

Ele não mais viria. Estivera por horas, rondando em silêncio nas areias junto ao mar, em silêncio e a sós, primeiro, e depois junto com o amigo, em choro desesperador. E pedira ao amigo que fosse até ela, que lhe fizesse companhia, que dissesse a ela alguma coisa, que a ajudasse na solidão que ele sabia certa.

Que o amigo dissesse a ela que não tinha coragem para ficarem juntos. Que seu espírito conturbado poderia estragar tudo o que de belo tinham vivido juntos. E isto ele não queria. Não queria, com sua estranha presença, destruir momentos tão lindos.

Fazia pouco tempo que se conheciam. Mas pareciam séculos de uma existência em comum.

Nas horas poucas em que passaram juntos perambularam por mundos distantes e infinitos. Estiveram no fundo dos oceanos e nos mais longínquos planetas e em outras galáxias até. Completavam-se.

Ela aparecera, de passagem, um dia, na cidade dele que era longe do mar. Vinha de um congresso na capital e ali passara para deixar a irmã dele que fora junto. A família insistira que lá pernoitasse  porque o caminho dela ainda seria longo. Muitas horas em estrada de chão batido teria pela frente. Ficou. E ao jantar se conheceram.

Ele tinha muitas histórias a contar. Voltara a pouco de um país da Europa onde estivera asilado. E a noite fora pequena para tanto a se dizer e tantas idéias a se trocar.

No dia seguinte não a deixaram partir. Inventaram o passeio para a praia, para a casa perto dos rochedos, para apreciar as delícias de um camarão recém trazido do mar.

Retornaram no final do dia. Menos ele e ela que lá ficaram até o último raio de sol de um lindo domingo que findava.

E cada um voltou então para as suas lides de todos os dias.

Fora um chamado seu que a fez ir voando ao seu encontro. Felicidade jamais imaginada sentira ao ler as palavras dele em seu apelo naquele telegrama que viveu uma vida em suas mãos, e em seu coração, até virar um farrapo de papel amarelecido. Palavras, doces palavras retidas pela vida na memória dela:

“doce saudade de momentos inesquecíveis vividos ao som de vagalhões são como uma sinfonia, uma novo amanhã, uma nova vida”.

 

E um telefonema em que pedia que fosse logo ao encontro dele. Uma longa conversa em que ele afirmava já estar atrasada pela ineficiência das comunicações. Era um tempo de conversas intermediadas por telefonistas, de estradas de chão, de dificuldades mil para os encontros apaixonados de amantes separados pelas distâncias.

E ela foi ao encontro de um vazio, de um céu tumultuado, de uma solidão amarga, fria e silenciosa entre quatro paredes.

Com ela ficou apenas a esperança de que o mar batesse menos furiosamente nos rochedos, que os caminhos melhorassem, que a chuva não mais se misturasse com suas lágrimas e que ela pudesse retornar, lentamente, para o seu dia-a-dia.

E retornou, olhando os desenhos formados pelas nuvens… formas que o vento em instantes desfaz… como fora esta história. Como estranhos desenhos desfeitos pelos ventos nos céus…

E retornou, com aquela chaga a se abrir dentro de seu eu, o seu eu que era tão vazio e tão só antes “daquela sinfonia, daquele novo amanhã, daquela nova vida”.





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