Agarrou o pequeno curumim e com ele em seus braços atirou-se nas águas de um raso banhado, coalhado de juncos e taboas
A velha índia mastigava as folhas secas do tabaco que colhera na última safra. Precisava deixá-lo bem cremoso para colocar sobre a ferida aberta na perna do valente curumin que, ao seu lado, mordia os lábios para não chorar de dor. O sangue ainda escorria. Pequeno, ainda, pensava que podia acompanhar os mais velhos nas artes de jogar pequenas lanças feitas com ramos das árvores que vicejavam ao redor de sua taba.
Não ouviu quando alguém a chamava, angustiadamente. Porque os seus velhos ouvidos já pouco distinguiam os sons que ecoavam de longe. A tribo, ou o que restava dela, naquele início de século XIX, tinha erguido sua aldeia em uma clareira a uns cem metros do rio que os brancos chamavam de Negro, em meio aos altaneiros curis, que eram os guardiões das florestas de todo aquele imenso território por onde, há séculos, seus irmãos se locomoviam.
O instinto da velha índia — que todos, carinhosamente, chamavam de Uietê Atipó —, soprava em seu íntimo que alguma coisa muito tenebrosa estava acontecendo. Sentiu então o cheiro de uma fumaça diferente, o cheiro de uma fumaça que ela sentira já por diversas vezes quando vira o homem branco matando as onças que moravam na mata. E em seguida viu, apesar de já estar com os olhos turvos, a fumaceira a se erguer aos céus. Fumaça que saía pelas frestas da oca e se confundia com as nuvens lá no alto.
Agarrou o pequeno curumim e com ele em seus braços atirou-se nas águas de um raso banhado, coalhado de juncos e taboas. Em meio delas puderam ficar fora da visão de quem pela ocara estivesse. Imaginava o pior. Todos os homens estavam longe, em busca da caça que já rareava na vizinhança da tribo. As mulheres nas roças, do outro lado da mata, plantando milho e plantando mandioca. E dentro da oca, apenas a jovem índia esperando pela hora do nascimento de um novo curuminzinho.
A oca em chamas. Cinzas e fumaça espalhando-se pelo ar. Uietê Atipó deixou o curumin quase debaixo d’água. Fez sinal a ele que ficasse bem quietinho. Arrastou-se, como pode, lentamente, como uma cobra, até conseguir chegar na parte que o fogo ainda não havia alcançado. Conseguiu rolar seu corpo para dentro. Pela luz que do outro lado o fogo projetava, viu sua neta banhada em sangue. Sangue que vertia da altura de seu coração arrebentado, Provavelmente por balas disparadas de um fuzil. Foi aquele, para ela, quase silencioso som, que tirara a vida da linda moça que ainda teria uma longa vida pela frente. Ao lado dela um serzinho quase inerte.
Ela não ouvia nem um choro e nem um gemido do tenro curumim coberto de sangue também. Levou suas mãos ao peitinho da criança. Percebeu que respirava. E sentiu, sob as palmas estendidas, que um coraçãozinho ali ainda batia. As balas não o atingiram. Quieta e inerte ficou ao lado dele, estendida no chão da oca, atenta para qualquer movimento estranho. Palpando em redor encontrou uma faca. Com ela cortou o cordão umbilical.
Com as fitas de embira que ali já se encontravam amarrou-o fortemente. Com a criança encostada em seu peito esgueirou-se para fora da oca. Conseguiu escapar, por segundos, dos troncos acesos que já despencavam no solo. Com o bebê em seus braços, arrastou-se até a parte em que a cobertura encostava na terra, no lado oposto da ocara. Rolou para fora e, lentamente, foi para os lados que ficavam atrás das árvores, distantes poucos metros de onde estava. Ali ficou, apertando o peito da criança e soprando em suas narinas e em sua boca até sentir seu choro fraco e seu gemido que parecia vir de outra vida, de tão distante lhe afigurava.
Não conseguia atinar com o que havia acontecido. Se já pouco via com seus olhos já meio encobertos por aquela massa branca que toldava sua visão desde que a velhice chegara, menos ainda enxergava agora com aquela fumaceira toda que levava a sua oca pelos ares.
Achou estranho que, de toda a taba, apenas a sua fora atingida. A sua, que há tantos anos já, tinha sido de seus pais e dos pais de seus pais. A velha índia pertencia a uma tribo que há tempos já se fixara nas margens do Rio Negro. Porque ali a pesca era abundante.
Porque ali as frondosas curis jogavam na terra o alimento fulgurante que alimentava toda a tribo em todos os meses de frio. Porque ali a caça era pródiga. Aves que passavam quase a seus pés, fáceis de criar, como as curicacas, forneciam-lhes boa carne.
Ficou agachada atrás do tronco de uma grande imbuia. Colheu algumas folhas, de formato côncavo, que encontrou a seus pés e verteu a água da chuva, nelas contida, para dentro da boca do pequeno curumim.
Seus sentidos físicos pouco ou nada lhe ajudavam. Assobiou, como pode, com seus lábios já murchos, para o menino que deixara no banhado, escondido entre os juncos e taboas. Arrastando-se, como uma serpente, chegou ele até onde se encontrava Uietê Atipó. Sorriu ao ver o neném nos braços da velha. Mas não era para deslumbrar-se que ela o chamou.
—Meu curu, bota tuas orelhas no chão e me conta o que escuta.
—Um tropel de muitos pés, Araya!
—Não ouve tropel de cavalo?
—Não, Araya, só gente. Em toda a volta.
Os membros da tribo que se encontravam nos mais distantes locais receberam avisos vindos pelo ar, de que a taba havia sido invadida. Avisos em forma de sinais de fumaça. Em forma de sons que imitavam o trinar de alguns pássaros e de outros animais.
Treinados desde pequenos na defesa de seus territórios cada qual sabia a posição que deveria tomar em relação ao sol. Foi assim que um grande círculo se formou. À medida que se aproximavam da taba, sua circunferência diminuía. Alguns com rifles nas mãos. A maioria com arcos e flechas, Prontos para defender os seus.
A taba não se encontrava deserta. Em algumas das ocas permaneceram os anciões, os doentes e as crianças. Assim como naquela que havia sido incendiada. Quietos e amedrontados em seus tugúrios permaneceram.
Os homens, que há muitas luas apenas usavam de suas armas para a caça, a fim de trazer o alimento para o seus, estancaram a algumas dezenas de metros de distância da periferia. A maioria, estática e em silêncio, ali permaneceu. Alguns guerreiros avançaram, lentamente, até a oca onde chamas ainda restavam. Foi então que perceberam a jovem índia, já quase carbonizada, em seu interior. Outros correram até o banhado, para, com suas vasilhas levarem a maior quantidade de água que pudessem. Pelo menos abrandar a fumaça que restava. Fazer o rescaldo nas brasas ainda ardentes. Recolher o que sobrara do corpo inerte da esbelta moça que incendiara o coração de Abaetê.
Outros procuravam rastos ao redor da oca, ao redor da taba. Não muito distante encontraram sinais no tronco de uma árvore. Sinais de corda que ali tinha sido amarrada. No chão excremento e odor de urina de cavalo. E no chão os sinais de ferradura. Sinais que até ali vieram e dali voltaram.
Da árvore até a oca a grama amassada mostrava pegadas de um grande calçado de homem branco. Daqueles calçados que deixavam atrás do calcanhar um sinal como se fosse de um pedaço de ferro cheio de pontinhas. Como daqueles espinhos que feriam pés não acostumados a andar sem proteção.
Precisavam saber para onde seguira o autor que causara tanta desgraça em sua tribo tão pacata. Enquanto alguns seguiram o caminho que o malfeitor tomara, outros ficaram ao redor do local que restara da grande oca do cacique e de sua família.
O pajé aproximou-se do corpo queimado. Sentou-se no chão a seu lado. Ficou a observar e a fazer as suas falas em forma de lamúrias cantadas. Os pais e irmãos da moça, a pequena distância, queriam chegar perto para abraçar o que restava de um corpo que fora tão lindo. Foi então que uma mancha de um vermelho já meio queimado, que rodeava a parte de cima da cintura da jovem, chamou atenção do velho índio. Viu o buraco por onde a vida tinha jorrado. Virou o corpo. E na parte de trás outro buraco. E logo avistou a bala que atingira uma das vasilhas de barro, deixando-a em estilhaços.
Mas havia também outro lago de sangue, já escuro, que escorrera das partes genitais da mulher. Perto dali, a placenta e o final do cordão umbilical largado ao léu. Fora cortado com uma faca bem afiada. Porque a ponta não fora mastigada com instrumento cego.
Mas e o serzinho que acabara de nascer? Onde andaria? Foi então que Abaeté, o marido da linda mulher que já viajara com os anjos e estava passeando nas campinas eternas saiu de seu marasmo, de seu mutismo, de seu choro contido. Gritou aos céus. Clamou às divindades, ao dono dos trovões. A dor em seu peito era tão grande que as palavras eram desconexas. Saiu em gritos para longe de todos. Abraçou uma árvore e pedia a Tupã que o levasse também.
Estava assim, neste desespero, quando ouviu o choro de uma criança. Choro de um recém-nascido. Pensou que eram suas alucinações. Foi então que viu Uietê Atipó, arrastando-se pelo chão com algo em seus braços. Ao lado dela, mal conseguindo caminhar, com sangue a escorrer de um grande lanho em sua perna, o pequeno curumim, irmão de sua amada.
Não acreditou no que via. A velha índia chorava ao ver o tão imponente guerreiro derramando lágrimas e clamando a morte aos céus. Nem conseguia contar tudo o que vira, tudo o que acontecera. Estava exausta. O cansaço pelas corridas com suas pernas lassas, com seu corpo vergado, sem quase nada ouvir e pouco enxergar. E o menino, ao lado, a gemer com seu ferimento já infectado.
Parecia que Abaeté ressuscitara. Tomou o pequeno ser em seus musculosos braços e o elevou aos céus, bradando as mais gratas palavras que conhecia em sua língua.
—Avati! Você será o nosso Avati, o ser encantado que nos protegerá! Que Tupã te ampare e te cubra de bênçãos, meu filho Avati!
*Fragmento de um próximo livro ainda em construção.