Amor que se define não é Amor


Apenas o Amor pode unir dois espíritos lutando contra o estrondo das correntes de águas tumultuosas

 

 

 

Estudantes perguntaram-me, um dia, como eu definiria o Amor. E eu, num relance, num ímpeto, que surgiu do fundo mais fundo de meu ser, afirmei que o Amor é indefinível. Porque Amor que se define não é Amor.

 

 

 

Talvez estas palavras tenham brotado das memórias ancestrais, dos gritos de outrora, de vidas vividas em épocas remotas, de tempos tão distantes sedimentados sob séculos de pedras lascadas e polidas.

 

 

 

Porque apenas o Amor pode unir dois espíritos lutando contra o estrondo das correntes de águas tumultuosas, contra as ondas das águas encrespadas dos mares em noites de tempestade.

 

 

Foi um Amor assim o Amor que um dia passou por estas plagas e uniu dois corações que pela eternidade se buscavam.

 

 

 

Vieram do espaço em caravanas diferentes. Em tempos distintos. Sabiam da existência um do outro. Mas não sabiam nem como, nem onde e nem em que circunstâncias iriam algum dia se encontrar. Nem sequer imaginavam que este dia alvissareiro poderia chegar, em alguma época, mesmo que distante.

 

 

 

O Amor que primeiro a estas plagas aportou, sentia, já em sua adolescência, uma saudade imensa de alguém que nunca havia encontrado neste mundo. Nem mesmo em sonhos. A melancolia acompanhava-o. Sentava-se no trampolim de uma pequena ponte e a olhar a água a correr, brilhando ao sol de cada entardecer, ficava a escrever ridículos poemas de amor para um alguém que apenas em sua imaginação vivia.

 

 

 

Os dias corriam e junto com eles, por muitas intempéries amorosas, o Amor foi passando também. O incrível é que nos braços de cada um desses amores imaginava estar junto da paz há tanto procurada. Pensava haver encontrado o Amor. Percalços atrás de percalços, um a um, todos, ao findar, deixavam algo a ser rememorado. Assim como as fímbrias de magníficos e dourados crepúsculos que aos poucos se desvanecem.

 

 

 

Houve tempos em que o Amor teve até remorsos. Porque em seu âmago sentia que aqueles amores efêmeros, já sem vida e sem cor, estavam a lhe machucar a alma. Vivia entre longas e fantásticas e curtas e diáfanas aventuras amorosas. E um vazio a amargurar- lhe bem no fundo mais fundo de seu ser.

 

 

 

Um dia estava o Amor envolvido a ministrar uma palestra para uma turma de estudantes em um colégio de sua vila. Deparou-se, frente a frente, com um duro olhar a enfrentá-lo. Passou de relance. Esqueceu a atitude. Mas o olhar ficou em sua mente.

 

 

 

O Amor continuava em sua vida sem saber que a sua alma gêmea, aquela pela qual sonhava desde a adolescência já caminhava, pelas mesmas sendas, quase a seu lado. E continuava indo ao encontro de amores que lhe sorrissem sorrisos lindos, que lhe enviassem rosas púrpuras, bilhetes românticos.

 

 

 

 

Numa tarde reluzente, o Amor que há tanto procurava, apareceu em seu recanto. Para entregar-lhe um pequeno volume de folhas datilografadas carregadas de poesias. Pediu-lhe que as analisasse. Porque as professoras de seu colégio lhe disseram que ele, o Amor, era a pessoa mais indicada, na região, para opinar sobre a sua arte poética.

 

 

 

Não se reconheceram. O Amor tomou em suas mãos aquelas folhas todas e começou a ler e a sentir cada poema ali inserido, como se, em alguma época, já os tivesse lido. E ficou encantado. Não era muito chegado a poesias. Porque, dizia, lera já tanta coisa sem sentido, sem nexo. Tantos poemas frios, calculistas e insossos haviam passado diante de seus olhos, que pouco valor dava para a arte poética de seu tempo. Amava os parnasianos. Deleitava-se com Castro Alves, com Gonçalves Dias. Com versos que já declamava desde sua mais tenra infância. Prometeu que os leria. Com carinho.

 

 

 

Encantou-se desde os primeiros versos. Mostrou-os a amigos e familiares. Fez algumas pequenas anotações. Em outra tarde entregou-lhe as folhas com os devidos elogios.

 

 

 

Anos, novamente, se passaram. Até que um livro de poesias é lançado na pequena vila. Um livro da sua — ainda não reconhecida — alma-gêmea. O Amor, no jornal, em que mantinha uma coluna, teceu os melhores elogios para a obra recém lançada. Porque, uma vez mais, ficou encantado com o todo que leu.

 

 

 

E assim as duas almas começaram uma amizade que jamais teria fim… Que foi ficando, a cada dia, mais forte. Viajaram. Conheceram outras plagas. Escreviam, em uníssono, contos e poemas.

 

 

 

Madrugadas insones a ler, a escrever uniam mais e mais os dois espíritos. Sentados, frente a frente, o Amor contava de seus amores mal sucedidos. Chorava por mais uma vez ficar a sós. E sua alma-gêmea, esta desconhecida e não imaginada alma-gêmea a lhe ouvir e consolar. Com palavras líricas, com a poesia que de seus lábios fluía como a água que das cristalinas fontes flui.

 

 

 

O Amor-poeta, vamos chamá-lo assim, um dia mudou-se para plagas longínquas. E não mais os serões literários aconteceram. Cartas quase diárias, de início. Depois longos silêncios. O Amor estava desesperado pela falta que aquela amizade lhe fazia.

 

 

 

Só entendeu as ausências e as distâncias quando recebeu um imenso pacote. Reconheceu, de súbito, a letra. Um volumoso pacote, cheio de cartas, em forma de líricos poemas, que escritas foram ao longo do tempo, ao longo dos dias.

 

 

 

Nelas o Amor-Poeta mergulhou todas as angústias em que vivia. Porque amava o Amor. De uma forma inconcebível. De uma forma avassaladora. De uma forma impossível. Por razões tantas. Porque o Amor não aceitaria a forma de amor que o Amor-Poeta lhe estendia. E porque ele já estava unido a outra pessoa.

 

 

 

Então o Amor foi lendo, uma a uma, aquelas páginas que eram um puro poema de Amor. E se embevecia com as palavras que ia acumulando dentro de seu ser. Chorou. Sem entender muito, ou sem entender nada.

 

 

 

Eram palavras que falavam de um Amor que ultrapassou todas as portas. Um amor que vinha desde os umbrais e lançava-se através dos páramos azuis. Que agora já não teria volta. Um amor que extrapolara para além de apenas um apego de almas. Um amor que ansiava pelo corpóreo. Que não concebia o atemporal. O Amor sempre a lhe responder. Esquivando-se de todas as formas. Porque barreiras intransponíveis estendiam-se à sua frente.

 

 

 

E o Amor tentava, quase em vão, convencer o seu Amor-Poeta. Em cartas tentava mostrar-lhe a impossibilidade daquele amor… com imensa ternura procurava as mais suaves palavras para não magoar o Amor-poeta.

 

 

 

Em cada linha, em cada palavra, esparravam-se pelas páginas as angústias de lado a lado. Porque o Amor-Poeta já decidira colocar para além de todos os tabus, de todas as circunstâncias, as suas armas, para que o seu Amor, a seu lado consentisse viver.

 

 

 

E o Amor a lutar contra todas as convicções, contra todas as convenções de sua vida, de seu eu, da forma com que fora criado para fugir para bem longe deste amor impossível que sentia crescer dentro de seu eu.

 

 

(Continua…)





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