ADAIR DITTRICH: Reflexões movidas a gasogênio


Foto: Carro movido a gasogênio/Wikipédia

Madrugada de inverno. Sempre é madrugada quando o inesperado acontece.

E passava já da meia-noite de uma gélida noite quando fomos acordados em nossa casa que era em plena praça da cidade que dormia. Um chofer de um caminhão insistentemente batia a nossa porta para nos comunicar que minha Nonna Thereza Gobbi estava muito mal. Ela morava na casa de Marcílio Dias com uma porção de gente, que eram as suas velhas amigas italianas e seus empregados.

E o chofer do caminhão tinha a incumbência de nos dar a triste notícia, levar minha mãe e avisar e levar junto também o médico e o padre.

Não sei quem era o chofer. Poderia ser o Braz ou o Buca. Eles moravam em uma casa de madeira a que chamavam “República”, já para cima do Salão Metzger (hoje Bar do Coringa). Acordados pelos empregados de minha Nonna prontificaram-se em ligar o caminhão, fazê-lo funcionar e ir até a cidade levar o triste aviso.

Ligar o caminhão!

Para quem não conhece o passado dos motores à combustão, parece fácil. É só virar a chave da ignição e o motor de arranque já dá sinal e pode ser dada a partida. Mas em 1946 não era assim. Motores à gasolina precisaram ser transformados para funcionarem com um gás menos nobre, o gasogênio, recurso único para que automóveis não ficassem tão e somente estacionados em suas garagens e caminhões em seus galpões.

Mas, o cerimonial para que a nova geringonça começasse a funcionar era longo e trabalhoso. Intensiva luta que levaria pelo menos uns dez minutos em clima quente e ao nível do mar. Com frio e geada tudo se prolongava ainda muito mais.

O gasogênio era obtido através da queima de carvão e ou lenha. A lenha era cortada em pequenos cubos que teriam, talvez, uns quatro centímetros de lado, em média, e eram amontoados nos pátios da serraria dos Olsen e cujo destino seria os geradores, uma espécie de tambor de ferro preto colocado na lateral ou atrás dos veículos.

Devido ao racionamento da gasolina, era de lenha, água e fogo que se fazia a combustão que movia a tudo que rodasse com pneus pelas estradas do mundo naqueles anos de guerra e pós-guerra.

“Não há petróleo no subsolo do Brasil”, disseram vozes embasadas em conhecimentos ultracientíficos de competentes técnicos, vindos dos Estados Unidos, especialmente para contestar o que Monteiro Lobato (autor do Sítio do Pica Pau Amarelo) afirmava.

E, com a gasolina importada e racionada, era o popular gás pobre, o gasogênio, a figura mística e necessária para que o país andasse.

Lembro-me muito bem do carro de praça (assim eram chamados os táxis naquela época) do seu Müller. Era preto e com aquele enorme tambor também preto colocado na lateral.

Até corridas de automóveis movidos à gasogênio havia. Chico Landi, um dos grandes pilotos da época ganhava todas. Diziam que era por ser proprietário de uma indústria que fabricava os geradores e motores por este combustível movido. Estes carros chegavam, durante a corrida, à fantástica velocidade máxima de 75 quilômetros por hora…

Imagine-se, então, o tempo despendido por um caminhão carregado com toras de madeira que eram trazidas do mato para as serrarias. Ou com uma carga de madeira destinada a Curitiba. Um dos mestres em conduzir estes caminhões era o Seu Froehner, que tinha a incumbência de levar esta carga para a fabricação dos pianos Essenfelder. E contava que nesta viagem levava mais de doze horas. Só de ida.

E, assim também foi naquela triste madrugada de primeiro de julho de 1946. Até que o motor do caminhão conseguisse funcionar e naquela morosidade chegasse a Canoinhas, muito tempo se passara desde o instante em que a minha Nonna Thereza começara a sentir que o seu fim estava próximo.

Mas foi o tempo, ainda que curto, ainda que exíguo, que houve para minha mãe ouvir da mãe dela um último suspiro e as palavras; “Ah! Nena!”

As pessoas que lá estavam contaram depois que o pedido dela, o último pedido dela, era o apelo para que mamãe nunca deixasse de atender o Hospital Santa Cruz como ela o fizera desde o ano de mil e novecentos e dezenove quando tivera início a sua lida.





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