ADAÍR DITTRICH: Mácula no corpo. E na alma…


Isto não é um comentário sobre uma obra literária. Nem mesmo uma crítica. Porque eu não me vejo colocada nessa categoria. E é algo que também não faz o meu gênero, o meu estilo, o meu jeito de ser.

Mas, preciso falar de um livro. De um livro que há poucos dias acabei de ler, de um livro cujas fortes imagens nele descritas não deixam meu espírito vagar sobre outras plagas.

Um livro que depois de chegar à última página para ele ainda volto a fim de ter a certeza de que tudo aquilo lá está mesmo escrito. Um livro que merece ser lido, relido, dissecado, degustado e colocado em pedestais para que aquele relato não se perca na desmemória dos tempos.

Um livro que não é um conto de fadas e nem um romance água com açúcar. Mas, um livro que deixa um rasgo em nosso corpo, faz um risco em nossa alma e impregna de sangue e de vísceras dilaceradas um doloroso caminho. O caminho do martírio percorrido por um garoto, um adolescente, um menino, que, ao raiar da puberdade encontra desumanos algozes que nele extravasam um ódio trazido das profundezas dos séculos.

O garoto sobreviveu e seu grito, que veio de longe e que está ali, letra por letra, ponto por ponto, quase cinquenta anos depois, é o grito sufocado na garganta de quantas centenas de outros e de outras iguais a ele e que como ele foram levados a porões imundos para satisfazer às insaciáveis e sórdidas manifestações de brutalidade de alguns subordinados cúmplices de um sádico poder.

Não, eu não poderia deixar passar em branco, eu não poderia deixar passar incólume este retrato, este retrospecto de um pedaço de vida de um jovem. De um jovem que foi dilapidado, escorraçado, injustamente torturado por aprendizes daquilo que de pior a humanidade gerou em milhares de anos.

E aquele garoto, ali dependurado, pela boca, em um cabide de ferro, com suas frágeis pernas já corroídas e debilitadas pela maldade dos carrascos-meninos-soldados, tinha consciência de que se dormisse seria o seu fim.

E então ficava a divagar, a sonhar, a relembrar um passado, um passado que fora um tempo muito bonito, muito especial, o tempo de sua infância repleta de aventuras nas serras longínquas ou nas pradarias próximas de sua aldeia natal.

A descrição do autor sobre este torturante período por ele passado não deve de forma alguma ser a descrição completa e total de todos os horrores pelos quais sofreu sob os coturnos, os pesados e impiedosos coturnos daqueles meninos-soldados que nele viam apenas o grande e sujo inimigo da pátria-amada-gentil!

E enquanto no terrível cabide pendurado pela boca, pelos dentes, pelos maxilares ele sofria na carne as dores que os algozes lhe impingiam, relembrava um passado mais próximo em que passava suas tardes e suas noites trabalhando em um bar para ajudar no sustento da família.

E, pendurado pela boca, ali, naquele sujo e infecto cabide de ferro, relembrava as lições de vida recebidas de um grupo de assíduos frequentadores que nele conseguiram incutir lições de dignidade, nobreza, retidão, amor à pátria, amor pela Liberdade.  Que lhe aguçaram os sentidos para a vida. Que lhe mostravam caminhos que “mais deveriam repercutir na consciência do que na reputação”.

Lendo este livro não dá para esquecer que é uma história real. Não dá para esquecer que é a história de uma vida vivida por um personagem real.

Não dá para esquecer que é uma história guardada no baú da memória de um garoto. Uma história arquivada a ferro por cinquenta anos. Uma história que agora chegou às minhas mãos e à minha alma.

E um livro que eu não li num átimo, num abrir e fechar de olhos. Porque não seria possível lê-lo de um fôlego. Imprescindível era respirar, profundamente, entre um gole e outro de água para esfriar os pensamentos e ungir a alma em outros céus.

Ler devagar era preciso. E as imagens ficavam e se fixavam indelevelmente em cada neurônio meu.

E assim ficarão porque vejo à minha frente o amigo que a escreveu e o imagino ainda garoto, ainda menino, ainda franzino, no desabrochar dos seus quinze anos, tendo aquele cenário de horror, aquele cenário macabro como palco de seu primeiro baile, da iniciação de seu adolescer.

E o garoto aí está. Altaneiro. Vencedor. Um senhor profissional. Um professor. Um artista das artes plásticas. E agora da arte da pena. Um escritor.

Com lágrimas na alma eu te abraço Pedro Penteado do Prado por teres escrito aquilo que muitos e muitas gostariam de ter contado e que, certamente não o fizeram porque presos estiveram àquelas mesmas promessas que fizeste frente aos carrascos.

A promessa de que se o tudo e o todo passado nos tenebrosos porões viesse à lume, famílias inteiras seriam torturadas, perseguidas e massacradas.

 

E no garoto a Mácula da tortura permanece no físico. Já a Mácula da alma…

 

MÁCULA. – Autor: Pedro Penteado do Prado.





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