ADAÍR DITTRICH: Excertos de uma carta de 1978 (Variações em torno de um tema antigo)


Amiga,

há um certo dia, ou época ou mês do ano, quando começam a cair as amarelecidas folhas das árvores, que nós começamos a remexer em nossas folhas de papel para aquela organização legal anual.

Bem, e nesses dias de buscas de perdidas folhas deste findo ano de mil e novecentos e setenta e sete encontro trapos de papéis rabiscados em horas inquietas, turbulentas, ou silenciosas e apáticas. Como sempre, pequenos trechos de nada, rabiscos que tentam auscultar a mudez, tentam ver o invisível, para daí retirar alguma coisa que este andarilho espírito meu não tem capacidade, para sozinho, imaginar e escrever…

…não, não, a sua opinião, assim à distância, não vale, nada diga e nem escreva. Sinta, no entanto, comigo, a vergonha de ter tentado escrever algum dia.

Estou eu aqui, agora, no meu canto, ouvindo as minhas músicas, aquelas dos grandes mestres, entre outras, como sempre, após um dia de quase descanso… não fosse esta busca por folhas perdidas que também poderiam ser mortas. Esta nossa infindável “Torre de Papel” que acumulamos a cada dia para que a vida persista e continue!

Desolada, entre estes escritos oficiais, encontro as minhas fracas tentativas de alçar esses nossos voos… de asas sempre podadas.

Então, resolvi a tudo, mais uma vez, juntar. E reescrevê-los em legível condição para que possa ser lido. E comentado. E criticado. Para que possa ser guardado mais um pouco dessa minha parte esquecida de mim mesma, deste meu eu romântico, deste meu eu errante, deste meu eu abstrato.

Fiquei aguardando tanta coisa, como a chegada de amigos longínquos, neste verão tão sem sal e tão sem sol aqui de nosso planalto norte.

Enquanto as borboletas azuis chegavam com as álacres vozes de tantos e de tantas sempre havia ainda um incentivo para as reles tentativas de recados, muitas vezes escritos às pressas, nos intervalos, entre um paciente e outro, na sala de cirurgia. Depois… as coisas morreram mais ainda.

E, parece-me que, de alguns dias para cá, os que me rodeiam sentiram-me mais alegre. E eu mesma senti que uma pequena alegria lá dentro se encontrava tomando o lugar da tristeza lúgubre e crônica. Escrevo agora até em papéis com linhas pautadas, demorando-me no desenho das palavras, para ver se consigo ser “lida”.

Não reclame o estilo e nem a viciada linguagem. As imagens passam voando, em velocidade muito maior que a da minha caneta sobre o papel.

Nossa noite ainda é quase quieta. Música, latidos de cães nessa noite clara que antecede a Sexta-Feira Santa. Acho que meus ouvidos já se habituaram até àquele rugido contínuo que emana daquela fábrica polipoluente que fica a vários quilômetros daqui. Prefiro, no entanto, multiplicar por milhões de vezes o ruído do mar, com ondas quebrando em rochedos. Ah! O mar e o seu vento que levam e lavam tudo, amaciam o estrondo dos motores, diluem fumaças… mas, quando poderei vê-lo outra vez? Tudo tem seu tempo. Ou teve.

Eu tenho ficado a derramar as minhas lágrimas emotivas a sós quando vejo um céu tão azul através dessas árvores tão verdes, ainda verdes, ainda árvores. Ou quando ouço os concertos e as sinfonias dos grandes mestres da música. Chorei ao ver Fitipaldi no lugar mais alto do Pódio. Chorei quando tive de anestesiar um garoto que trabalha aqui conosco vitimado em acidente de moto que se arrebentou na traseira de um caminhão.

É uma lástima não estarmos mais com nossos amigos dos poemas sem fim. Tanta poesia sobrando por aí. Tanta poesia espalhada no ar. Espalhada no luar que o meu quarto invade.

E, enquanto eu sonho o meu sonho colorido com minha praia distante, minhas palmeiras, meu mar azul, fico prisioneira dessa necessidade imperiosa de acorrentar-me cada vez mais profundamente ao quotidiano da vida. Mas não posso parar. Ah! Como eu queria ao menos um repouso, uma busca aos papos compridos quando eu fugia do mundo onde vivo morrendo de segundo a segundo.

E o importante nisto tudo é que não impedimos ninguém de falar com ninguém; que deixamos as flores florirem no seu tempo, que deixamos as folhas amarelarem no seu tempo e caírem ao chão quando precisam cair. Por que se incomodar com o que os outros fazem ou poderiam estar fazendo?

Estou ainda acordada, escrevendo, escrevendo, sabendo que amanhã (hoje) terei um dia puxado, sentindo a falta do sono que não dormi. Ah! E como eu quisera que no correr do dia eu tivesse um tempo para continuar assim, rabiscando, rabiscando, sem fim, sem fim, sem pensar no mais que há para se fazer. E não entendo como há pessoas que com tanto tempo para ler e escrever ficam apenas se preocupando com o que você faz, com o que eu faço, com o que o mundo faz.

A esta hora da noite (manhã?) uma rádio FM de Curitiba nos brinda com uma mescla de músicas orquestradas que são um colírio para a alma. Pena que estão se despedindo. Sempre se despedem às duas horas e retornam às seis. Sempre com palavras-poemas: “Não importa como estejam as coisas; não importa se faz frio ou calor; não importa como esteja a madrugada; o que importa é a sua companhia; logo mais estaremos juntos outra vez; até lá!”

    Até lá, amiga.

    Adair

    Canoinhas, Abril-1978.





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