Graife foi um imponente perdigueiro de negra e reluzente pelagem que vivia em nossa casa em um tempo em que os cachorros podiam circular livremente, sem coleiras e sem placas, por toda a vila. Dócil e amigo e de um inesquecível olhar meigo e cativante. Não tinha um grande porte, mas servia de montaria para muitas crianças que dele faziam o seu cavalo.
De manhã cedinho ficava a postos, ao lado do portão da casa, para acompanhar quem primeiro saísse em direção ao Restaurante da Estação Ferroviária da vila de Marcílio Dias onde receberia a primeira refeição do dia. E por ali e em torno dali perambulava visitando os ferroviários em plena sala do telégrafo ou na casinha onde ficava o Posto de Revisão dos trens.
Enquanto os trens de passageiros não chegassem ficava modorrentamente ronronando em cima de um capacho junto às duplas portas de vai-vem na entrada do salão de refeições do restaurante. Como um soberano sentinela, só deixava passar livremente quem ele conhecesse.
Levantava-se de um pulo e corria a dar sinal da chegada dos trens antes mesmo que eles estivessem no início da última curva antes da ponte para os que à tarde vinham do leste e bem antes ainda do limite do Triângulo para os que de manhã procediam do oeste.
Graife tinha a pata dianteira direita avariada. Assim, mancando, é que dele eu me lembro. Correndo com as três pernas boas levava a outra balançando no ar ou mesmo arrastando a pata ruim pelo chão. Foi nas rodas de um trem que aconteceu o traumatismo que aleijou o nosso cão. Foi num ato de heroísmo ao se atirar entre o trem e a plataforma da estação, à frente de uma criança que correndo vinha e estava quase caindo nos trilhos. Salvou-se a criança e o nosso herói teve a pata moída sob as rodas.
Mas, esta pata era a festa. Dele e nossa. Com esta pata ele cumprimentava as pessoas. Ele a estendia a quem com ele fosse conversar. Era só dizer: ”Bom dia, Graife” ou “Boa tarde, Graife” e ele estendia a mão. Perdão, a pata.
Na temporada de caça às perdizes meu pai tirava férias de seu serviço de fiscalização de trens e de estações. E o companheiro inseparável, ali, ao lado dele, acompanhando todos os preparativos, com os ansiosos olhos mais brilhantes ainda.
Era um limpar e azeitar a espingarda. Era um montar de cartuchos. Era um medir de pólvora e chumbo. Enfim, aquela azáfama toda que precede uma boa caçada. E o Graife ali. Rente. Só no aguardo da largada triunfal.
Cedinho eles saíam. Lá para os chamados Campos dos Miranda, um território independente, à margem direita do rio Canoinhas e à esquerda da linha férrea no sentido Três Barras a Marcílio Dias. A bem poucos e selecionados era dada a permissão para lá entrar e caçar. Meu tinha esse privilégio.
Voltavam à tarde carregados de perdizes. E somente as cabeças haviam recebido o chumbo disparado. Quando havia chumbo em mais algum lugar do corpo da ave minha mãe já dizia: “Não foi o Adolpho (meu pai) quem abateu esta”. E o detalhe mais importante era o comentado sobre o nosso Graife e a sua maneira de levantar a caça com sua chegada sutil e cautelosa ao esconderijo entre as moitas. E, depois do tiro que acertava a ave no ar, a queda e Graife a buscá-la, trazendo-a presa entre os dentes, sem nada estragar. Abocanhava a perdiz pela ponta das asas ou pela cabeça. Sempre.
Ele era o Graife. Imponente e nobre, como um “Graf”, de onde veio seu nome. Que virou Graife para todo mundo. O dócil Graife, o amigo Graife.
Era uma outra criança brincando com as crianças. Brincava de bola, de correr, de pegar, de amarelinha, de esconder e até de pular corda.
Era o guardião da casa, da família, do restaurante, da estação, de todos, enfim.
Era o caçador sensível e irresistível que acompanhava o meu pai.
E num dia em que eu já estava estudando fora recebo a triste carta de minha mãe contando que o nosso Graife tinha partido para morar no céu dos cachorros abençoados junto com seus anjos-irmãos.
Naquele tempo os pátios das estações ferroviárias eram pavimentados com o sambaqui que era trazido em vagões-plataforma dos sítios arqueológicos do litoral. Creio que a este material não era ainda dado o valor histórico que hoje se dá para que se possa fazer o mapeamento de antigas civilizações que as nossas costas habitaram.
O sambaqui era simplesmente retirado de seu habitat e trazido para atapetar o pátio das estações de trem. Removidos eram dos vagões e deixados à margem dos trilhos em montões regulares, abobadados. O sambaqui já era uma pastosa massa acinzentada recheada de conchas do mar e com a chuva transformara-se em um montão escorregadio.
E o Graife por estes montes estava correndo, como sempre o fizera, com suas três pernas. Suas pernas, a esta altura já mais fatigadas, já mais artrosadas pelo passar dos anos, não conseguiram correr e pular como sempre o fizera acompanhando o trem que passava. E escorregou. E foi para o lado dos trilhos. E não conseguiu mais sair. As rodas passaram por cima de Graife.
Com um uivo que se espalhou pela vila inteira, arrastou-se para debaixo do assoalho do restaurante.
Às pressas meu pai galgou a escadaria que ficava ao lado, atravessou o campinho até a nossa casa, carregou a espingarda e veio dar o tiro de misericórdia que acabaria com o sofrimento de Graife. O choro de meu pai foi o choro do mundo àquela hora. E eram as lágrimas de um povoado inteiro que ficou órfã e de luto do seu Graife.
Foi longo o tempo que se passou para meu pai voltar a caçar. Até um dia em que apareceu uma cadela chamada Moka. Mas esta é outra história. A história de Moka.