ADAÍR DITTRICH: A emergência


Foto: Médicos operam paciente nos primórdios do Hospital Santa Cruz de Canoinhas/Arquivo Mariangela Mussi

 

Carregado pelos companheiros, peões do café, como ele, em choque, o vermelho do sangue amalgamado ao vermelho da lama, Francisco chegou na madrugada encharcada ao pequeno consultório perdido na perdida e pequena cidade.

Pequena cidade longe de tudo e de todo o conforto.

Ali chegou o jovem, um quase menino ainda que de plagas distantes veio em busca de uma vida melhor.

Era jovem ainda a médica que sozinha estava atendendo naqueles dias. Acordada pela insistente buzina do jipe, recolhe a todos na humilde salinha de uma casinha de madeira.

Aumentada a chama do lampião Aladim para iluminar o espaço, percebeu de imediato, que o quadro apresentado era terrível. Este tipo de lampião que requer todo um cerimonial para ser aceso, já era deixado com a mínima chama, entre-apagado-entre-aceso para facilitar o trabalho caso chegasse uma urgência noite adentro. Não havia energia elétrica e muito menos água encanada. A água vinha de um poço com manivela e corda para puxar o balde.

Às pressas, um tamponamento nasal é executado, pois o mais premente é fazer cessar o que sangra, é estancar o sangramento que era volumoso. Rapidamente, também um soro é instalado na veia. E quando vai solicitar uma amostra de sangue aos companheiros do paciente, pois uma transfusão era urgente, percebeu que estava sozinha. Ela e o paciente em choque.

Com os pés enterrados naquele barro vermelho saiu pela madrugada encharcada, em busca de seus amigos que, num baile, no salão ali perto se encontravam. Ela só lá não estava porque a estafa já a encontrara no começo da noite.

Vieram todos e todas para ajudar na tentativa de salvar uma vida. E vieram preocupados pelo teor de álcool que haveria no sangue de cada um deles, pois era dia de festa e de comemoração. Ela já havia classificado o sangue do paciente. “O” Negativo! E entre os amigos três eram do mesmo tipo do garoto em choque. Os três se olharam prevendo que o rapaz também receberia álcool junto com o sangue. Mas não havia o que pensar. O sangue foi coletado e transfundido.

Naquele tempo não havia bolsas para coleta. Eram frascos de vidro. Mas já havia, e era coisa muito recente, equipos de plástico para colher o sangue e para transfusão. À época até o grande jornal “O Estado de São Paulo” fizera uma reportagem sobre “Os Plásticos Salvadores”. E como eram salvadores mesmo. Já vinham esterilizados, muito diferente dos antigos tubos de borracha deixados em formol…

Quando se ouviu o badalar dos sinos da Igreja chamando os fiéis para a Missa do domingo, ouvidos também foram os primeiros sinais de que Francisco retornava ao mundo.

E os amigos da médica ajudaram na higiene do rapaz e trouxeram roupas limpas para ele.

A moça do hotel trouxe o café da manhã. Outra vizinha, o almoço. E o Francisco foi ficando ali, ajudado por todos, num quartinho ao lado da pequena sala do consultório.

O responsável por Francisco, na fazenda de café, a quem chamavam de Gato, veio à cidade uns dias depois para saber dele e, exigindo uma recuperação imediata e urgente, pois o jovem tinha de trabalhar e muito lhe devia e “ainda mais esta despesa agora por causa desta maldita doença que ele já deveria ter trazido com ele.”

E a dívida era tanta que mesmo com anos de trabalho Francisco jamais conseguiria pagar. Dívida da viagem no Pau de Arara que o trouxera de sua terra. Dívida pela sua sobrevivência, pela sua comida e pelo catre onde dormia.

Quando ficou recuperado, quando o nariz, enfim não mais sangrava, quando a anemia aguda e a crônica já haviam sido debeladas, os amigos da médica deram-lhe dinheiro e em outra madrugada que não era molhada, levaram-no para outra cidade onde conseguiria tomar um ônibus e seguir em busca de uma nova vida.

E, para um Gato enfurecido, no dia seguinte, a única coisa que a médica pode dizer foi que quando chegou para vê-lo, de manhã, ele já não estava mais.





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