A médica e a prostituta


Olympia, pintura realista de Édouard Manet/Reprodução

Ouvia o seu ser todo lhe dizer que era sua obrigação salvar um ser humano

 

Alícia jantara mais cedo naquela noite que prenunciava uma tempestade jamais vista na região. O dia fora abafado. E passara horas atendendo no consultório. O colega, que era o dono do hospital onde trabalhava, oferecera-lhe tentadora proposta para lá permanecer. Residia no próprio hospital. Ajudava nas cirurgias. Dava segurança aos pacientes internados.

 

 

Chegara, logo após concluir a Residência Médica, cheia de sonhos e esperanças, naquela cidade promissora que se sobressaía em meio aos verdes cafezais e à terra vermelha.

 

 

 

 

Após o jantar fizera a costumeira visita em todos os quartos, examinando os enfermos e anotando no prontuário o que precisasse ser providenciado para o dia seguinte. Instruíra Ana, a auxiliar de enfermagem de plantão, que a avisasse sobre qualquer anormalidade e recolheu-se a seu apartamento localizado bem no final do corredor.

 

 

 

 

Apesar do vento que soprava, foi obrigada a ligar o ventilador, tal o mormaço a dar mais ênfase ao prenúncio de um temporal que se aproximava, lentamente. Através da janela aberta perscrutava as circunvoluções que as negras nuvens faziam pelo céu.

 

 

 

Era verão. E o chefe médico viajara, com sua família, para as distantes praias do litoral. Tinha o hospital todo em suas mãos. E o que mais pudesse suceder em uma noite de tempestade.

 

 

 

Acomodara-se em uma poltrona, ao lado da cama. Sob a luz do abajur procurava, no volumoso tomo de Atualização Terapêutica, que adquirira recentemente, decifrar os mais recentes casos que em suas mãos vieram cair.

 

 

 

Decifrar, sim! Porque não há doenças. Há doentes. Cada caso sendo um caso, decifrar-lhe o enredo é necessário. Juntava linhas abcissas e coordenadas imaginárias quando Ana vem lhe chamar.

 

 

 

Um moço, condutor de uma charrete, estava no saguão de entrada e precisava falar com a médica, urgentemente. Alícia não entendeu o olhar e o sorriso malicioso de Ana, quando ela citara as palavras moço e charrete. Mudou de roupa, às pressas, e foi atender o possível paciente.

 

 

 

Fê-lo entrar na sala de consulta. E o rapaz, desajeitadamente, esfregando as mãos foi logo explicando:

 

 

 

— Não, dona, não é pra mim. Eu faço um serviço, tipo de táxi para as donas… a senhora sabe…

 

 

 

Não, Alícia não sabia, não entendeu nada. Mas continuou escutando.

 

 

— Eu só fui mandado aqui porque uma das meninas que trabalha lá pra dona da casa não está passando bem… Quer dizer… ela está passando muito mal… Então é pra senhora ver uma receita de uma injeção para estancar a sangria, que eu já em seguida passo na farmácia e compro e levo lá que lá tem quem aplique.

 

 

 

— Mas, moço, como é mesmo o seu nome?

 

 

— Zé, José das Neves. Mas não é pra mim a injeção.

 

 

 

—Pois então, seu Zé, seu José das Neves. Fique calmo e primeiro me diga o que é que que a moça tem.

 

 

 

— Dona… Doutora Alícia, a dona lá da pensão não me falou. Mas pelo murmúrio e resmungo das outras meninas de lá eu entendi, mais ou menos, porque eu sou casado, a senhora entende, né. Eu entendi que é doença de mulher. Que deve ter perdido a criança. Que parece que o sangue não parou…

 

 

 

Foi só então que Ana se intrometeu na história e explicou que a moça em questão era uma prostituta. Que quando precisavam ir à cidade para fazer compras ou outras coisas chamavam os charreteiros. Que Deus o livre entrarem num automóvel de aluguel. Nunca mais as senhoras do bem da cidade tomariam aquele táxi. Restava a elas os charreteiros. Foi só então que Alícia entendeu o olhar e o sorriso malicioso de Ana.

 

 

 

— José, desculpe-me, mas eu não posso receitar uma injeção assim. Pode ser um caso muito grave. Preciso ir até lá para examinar a moça.

 

 

 

A tempestade que se prenunciava não teria feito tanto terror nas faces de José e de Ana quanto as palavras de Alícia.

 

 

 

— Dona, Doutora, por favor, não dá pra senhora ir lá. É zona de meretrício. O que vão falar?

 

 

 

Tanto José quanto Ana a tentar dissuadir Alícia de ir até o bordel. Mas ela nem os ouvia. Ouvia o seu ser todo lhe dizer que era sua obrigação salvar um ser humano. Isto é o que cantava bem alto dentro de seu eu. Colocou uma capa sobre a leve roupa branca que vestia. Apanhou uma maleta dentro da sala de consultas, sem esquecer-se de acrescentar alguma medicação de urgência, já antevendo que deveria trazer a pobre moça para o hospital.
Outro obstáculo. José negava-se, peremptoriamente, em levar a doutora em sua charrete. O que a cidade iria falar? O que as madames da sociedade iriam falar? E os homens, então?

 

 

 

Mas até conseguir um táxi àquela hora, o risco de encontrar a paciente já moribunda era grande. Ana não poderia ir junto. Não poderiam abandonar o hospital.

 

 

 

E lá se foi Alícia na charretinha, já imaginando o caos que a esperava, em direção a uma periferia da cidade, até então desconhecida por ela.

 

 

 

José parou bem nos fundos da casa. Era uma grande construção de madeira. De dois pavimentos. A parte da frente toda iluminada. Com luzes coloridas. Com música que se ouvia ao longe. Dentro, uma iluminação esmaecida. Alícia lembrou-se da música que falava da luz difusa de um abajur lilás… E sorriu.

 

 

 

 

Para os fundos estendia-se uma construção longa, com múltiplas janelas fechadas, uma ao lado da outra. Quase como se fosse um vagão de trem. Imaginou que o outro lado da casa fosse igual. Imaginou.

 

 

 

 

Desceram da charrete. José bateu em uma porta nos fundos. Chamou. Logo uma moça, muito gentil, veio atender. Que não entendeu, de imediato, a presença da médica ali. Mas Alícia foi logo explicando e perguntando onde estava a paciente. Foi conduzida ao quarto onde Madalena se encontrava. O branco da morte em meio ao vermelho do sangue. Alícia nem perdeu tempo em medir a pressão arterial. Tomou apenas o pulso radial onde nada percebeu.

 

 

 

Pediu que, com urgência, a moça fosse levada ao hospital. Estupefação geral. A esta hora mais colegas de trabalho de Madalena haviam acorrido. Afinal nunca um doutor se dera ao luxo de vir atender alguém naquele local. Muito menos uma médica, uma doutora.
E então apareceu a patroa. Vomitando desdém e arrogância de dentro de um vestido de tafetá, de listas grossas, em preto e branco, que descia até dois palmos abaixo do joelho. Um colar de pérolas, flagrantemente artificiais —naquela época as boas joias e adereços podiam ser usados abertamente, sem riscos —, com duas voltas a descer até abaixo da cintura. Sapatos de salto agulha, negros cabelos ondeados e presa ao lado uma rosa vermelha de veludo. Enrodilhava em uma das mãos o colar e na outra uma longa e antipática piteira com uma cigarrilha acesa na ponta.

 

 

 

 

 

As moças logo cochicharam para Alícia que aquela que vinha pisando firme e falando alto lá no começo do longo corredor era a madame, a dona.

 

 

 

—Aqui quem manda sou eu —foi logo dizendo para Alícia —, e esta moça daqui não saí. Nem tem como pagar o tratamento na casa de saúde.

 

 

 

 

O sangue ferveu no cérebro de Alícia.

 

 

 

— Como não sai, dona…

 

 

 

 

—Dona, não! Madame, Madame Marie Fleurdeli! – falou com grosseria, interrompendo Alícia que ficou a pensar “Que chique! Ela nem pronuncia o s.” — Sou francesa e sei muito bem o que estou dizendo.

 

 

 

Naquele tempo todas as donas de bordel diziam-se francesas ou argentinas. Achavam que daria mais ênfase à profissão e que seria mais chique…

 

 

 

 

Alícia resolveu ignorar a madame e pediu para que as outras a ajudassem a envolver a paciente em lençóis e que a levassem para um dos carros estacionados na frente da casa.

 

 

 

— Mas os carros, os táxis são para levar os nossos clientes, murmurou uma das moças.

 

 

 

 

—Todos entenderão. Vamos, vamos. Eu não vou deixar esta garota morrer.

 

 

Em poucas horas, após realizada a curetagem dos restos placentários, de devidamente medicada, de cessada a hemorragia, a paciente retorna, assustada, ao encontrar-se em um quarto de hospital. Enquanto corria plasma em uma veia e soro em outra, Alícia testara o grupo sanguíneo e o fator Rh da paciente e de suas companheiras que tinham vindo junto. E após fazer as devidas provas e contraprovas transfundiu o precioso e rutilante líquido salva-vidas.

 

 

 

 

Abriu, desmesuradamente, seus grandes olhos negros e ao ver a médica a seu lado imaginou que um milagre havia acontecido ou que ela já se encontrava entre os anjos no paraíso.

 

 

 

Quando Madalena soube que o sangue transfundido era de suas companheiras, entre uma nuvem de lágrimas, murmurou baixinho:

 

 

 

—Agora somos todas irmãs de verdade.

 

 

 

Foi só então que o aguaceiro, que há tantas horas já se anunciava, desandou dos céus, quase inundando a rua defronte o pequeno hospital em que Alícia, por bem pouco tempo trabalhou.





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