A história do meu avô, cervejeiro da Lapa


Família de meus avós paternos. Defronte à casa da chácara, nos arredores da Lapa. Antonio Dittrich e Luiza dos Santos Dittrich e 13 dos 14 filhos que tiveram. Meu pai está ao lado de meu avô. Era o segundo filho. A primeira era minha tia Rosa ao lado esquerdo de minha avó/Arquivo pessoal

Antônio Dittrich fabricou a melhor cerveja da época

 

 

Antônio Dittrich, ficou conhecido como o Cervejeiro da Lapa, depois de montar uma moderna cervejaria e fabricar a melhor cerveja da época.

 

 

 

Em alguns textos meus falei já sobre meu avô, o pai de meu pai. O nosso vovô da Lapa. Mas nada havia contado, ainda, da vida dele. Nós o visitávamos nas férias. Foi pouco o tempo de convívio com aquele velho bondoso e sorridente que ainda carregava na pronúncia o sotaque austríaco.

 

 

Éramos crianças, que ao redor dele ficávamos, para ouvir histórias esquecidas no tempo. Contos infantis, certamente. Éramos um bando. Quase todos da mesma idade. Para brincar com ele pedíamos que repetisse a palavra macarrão. Só para ouvi-lo, a sorrir, falar mocorrrrrhhhonnn, carregando nos erres guturais.

 

 

 

Anton era o nome que portava em seus documentos. Nasceu no dia 10 de janeiro de 1865, em Viena, a terra dos grandes mestres que compunham valsas que eram tocadas pelos salões e pelas ruas.

 

 

 

Vivia rodeado da alegria reinante em uma cidade que, em todas as primaveras, enfeitava-se com as tonalidades de todas as cores que as flores podem exibir. Flores que desciam do alto de janelões e escorregavam por suas folhagens até o rés do chão. Flores que espalhavam suas cores em tantas esquinas, em tantas pérgulas, em tantos jardins.

 

 

Vivia rodeado da alegria dos bosques cobertos pelo verde dos abetos e pinheiros coroados com o branco da neve de todos os invernos. E nos folguedos das estações nevadas, entre os bosques de Viena circulava com seus patins. Ah! Os bosques de Viena. Consagrados em uma das mais belas valsas de Strauss.

 

 

 

Como era usual entre os jovens de seu tempo, agregou a seus estudos o conhecimento de um ofício. Foi aprendiz de padeiro. E, muitas vezes, com o branco do trigo em seus cabelos chegava na casa do professor de violino onde aprendeu a, suavemente, perpassar um arco que tangia cordas de onde saíam as mais românticas melodias que em seu introvertido ser vicejavam. Fico a imaginá-lo a solar, de Schubert, a “Ave Maria” e a consagrada “Serenata”.

 

 

 

Veio para o Brasil em 1879, fazendo parte de um grupo de imigrantes. Segundo esta data, teria 14 anos. Mas segundo o que escreveu, em seu livro, “Retratos”, minha prima Aline Dittrich Zappa, teria ele 18 anos, quando aqui chegou. Para pagar a viagem de navio desfez-se de seu inseparável violino. Um de seus irmãos, que se estabeleceu em território catarinense, acompanhou-o nesta aventura em busca de novos horizontes. Era muito ativo. Um visionário. Fez parte integrante, não apenas do desenvolvimento da economia da cidade, como de sua parte social. Como em sua terra natal falava-se a língua germânica fácil foi entrosar-se com demais imigrantes alemães.

 

 

 

Sendo músico, participou, com seu novo violino, e, posteriormente, com um violão, de uma banda que animava os bailes e festas do Clube Teuto-Brasileiro, clube que ajudou a fundar. Era um clube que congregava não apenas os imigrantes teutônicos, mas muitos nativos da terra e imigrantes de outros países também.

 

 

 

Era amigo de um irlandês de cabelo ruivo que já lutara em uma revolução pelas bandas lapianas e era chamado de tenente. Tenente Jorge Emples. Que tinha uma linda filha chamada Luíza. De quem ele se enamorou. Casaram-se. Tiveram catorze filhos. Meu pai era o segundo. Nasceu em 1893. Bem no tempo da Revolução Federalista.

 

 

Fez questão de que todos os filhos e filhas estudassem. Valorizava o conhecimento. Não só estudar. Aprender um ofício também.

 

 

 

 

Moravam em uma chácara nos arredores da Lapa. Um lugar encantador. Onde eu me deliciava com as frescas tangerinas colhidas no pé. E outras frutas que lá havia também. Era um pomar a se perder de vista. Era uma delícia ficar andando a cavalo com vovô puxando pela rédea. Mesmo com um animal mansinho ele ficava preocupado em me deixar a solta.

 

 

 

 

Ele gostava de cavalgar pela chácara inteira e até para dar uma repassada e um bom dia aos amigos das chácaras vizinhas. Tinha uma charrete que o levava e à vovó para visitar os filhos e amigos que moravam na cidade.

 

 

 

 

 

Esta chácara foi alvo da ganância dos maragatos que nela fizeram seu quartel por ocasião da Revolução Federalista. Apossaram-se, com seus cavalos e mulas, de toda a área pastoril e dos ranchos. E da casa também. Alojaram-se nos quartos, com suas botinas que tinham, além da costumeira lama grudada, o esterco dos animais.

 

 

 

 

Ele e minha avó foram obrigados a servir a toda a tropa invasora com os alimentos que tinham em casa. Cozinhavam para eles da manhã à noite. E meu avô não parava de sovar e assar pão. Até o dia em que, nem um grão restava na chácara para ser cozido. Os próprios maragatos matavam, carneavam e assavam os gordos porcos e bois e buliçosos galos e galinhas que, com tanto carinho vovô criara.

 

 

 

 

 

Segundo relato de minha prima Aline Dittrich Zappa, quando, finalmente, o local foi retomado pelas forças oficiais, a chácara era uma terra arrasada, como se por ela tivesse passado um bando de gafanhotos.

 

 

 

 

Ficaram reféns, tanto eles como todos os empregados do sítio. Fico a imaginar meus avós com os filhos bem pequenos ainda, a se desdobrar em torno dos fornos e fogões para alimentar aquele batalhão de homens esfomeados.

 

 

 

 

Era realmente um cidadão que não temia o perigo. Antes da invasão de seu encantado território ele colaborou na defesa do cerco aos maragatos. Fazia de tudo. Ajudava a pensar ferimentos em soldados feridos, a carregar peças de artilharia.

 

 

 

Ela também nos conta que, acabada a Revolução Federalista, o Marechal Floriano, presidente da nação, enviara muitos contos de réis aos fazendeiros que tinham colaborado com o governo e que tiveram seus patrimônios dilapidados, tanto pelos maragatos, como pelas forças oficiais. Para Antônio Dittrich jamais um tostão foi entregue.

 

 

 

 

 

Por todas estas suas ações relativas ao Cerco da Lapa, teve seu nome gravado em uma placa no Panteão dos Heróis.

 

 

 

 

 

A fábrica de cerveja que ele montou foi instalada num local chamado Casa das Telhas. Tanto as garrafas de vidro como o lúpulo usado na fabricação do famoso líquido eram procedentes da Alemanha.

 

 

 

“Antonio Dittrich, o Cervejeiro da Lapa. “Cervisiafilia – A História das Cervejas no Brasil”

 

Sempre ouvimos chamar, pejorativamente, “marca barbante” para qualquer coisa mal feita. As cervejas daquela época eram fechadas com rolha. A fim de que não saltassem fora, por causa da fermentação, esta rolha era amarrada, com um barbante, ao gargalo. E assim era a cerveja que meu avô fabricava. De sabor inigualável segundo publicações da época. E que de “marca barbante” não tinha nada.

 

 

Rótulo da cerveja escrito em alemão/Reprodução

Vovô Antônio Dittrich ficou famoso pelo sabor de suas bebidas, tanto da saborosa loura e de uma outra escura, como também das gasosas de frutas que elaborava.

 

 

 

 

Teve que fechar a cervejaria no final dos anos 1930. Já não podia mais importar o material e os ingredientes que necessitava. A Segunda Grande Guerra Mundial, que se iniciava, impedia este comércio com os países da Europa e mesmo com o resto do mundo.
Vovô da Lapa era muito alto. Pelo menos assim sempre me parecia. Vestia-se com simplicidade. Com roupas comuns. Mas sempre com seu colete, alva camisa de colarinho e gravata. Como era usual na época que dele me lembro.

 

 

 

 

Não o ouvi cantar. Porque o conheci já de barbas e cabelos brancos. Dizia que não conseguia mais tirar da garganta aquele dó de tenor que o consagrara. Mas quando estava a sós, acomodava-se em sua cadeira de balanço, em estilo austríaco, no avarandado de sua casa na chácara, soltava sua voz e solava as cordas de seu violão. Diziam que até os passarinhos apoleiravam-se na balaustrada para ouvi-lo.

 

 

 

Ele nos deixou em um gelado junho de 1943. Foram as mais tristes férias que passei na Lapa. Porque, em lugar de nos divertirmos com ele, correndo pela chácara, assistimos apenas a tristeza de vovó e de todos os filhos reunidos em uma prece de despedida a um cidadão lapiano que nascera em Viena.

 

 

 

 

 

Alguns trechos deste texto foram baseados nas seguintes publicações:
1) “Retratos” Zappa, Aline Dittrich. Editora Juruá. 2003.
2) “Antonio Dittrich, o Cervejeiro da Lapa. “Cervisiafilia – A História das Cervejas no Brasil”.





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