Poema para uma Criança


Outubro lembra um mundo de fantasia. Outubro é a minha fantasia. Em outubro eu me visto com as cores da Primavera e me cubro com o manto da saudade. Tanto em outubro a relembrar. A descoberta da vida em um novo poema … E tanto a comemorar. Criança, Professor, Médico e o Outubro que se veste de rosa para nos lembrar a todas nós que é tempo de olharmos para o nosso corpo também.

E na tentativa de algo a dizer sobre tantos temas lindos fiz uma viagem aos tempos passados onde encontro em um amarelecido outubro antigo um poema. Um poema de nossa poetisa Isis Maria Baukat. Um poema para uma criança. Um poema para a criança que fomos. Um poema para a criança que somos.

 

Criança,

            Hoje estou diante de ti pronta para o diálogo que há muito não tivemos. Estou só, com minha fortaleza e minha fragilidade, minha grandeza e minha pequenez. Tu me olhas como olharias a flor ou a loja de brinquedos ou a caixa de surpresas ou o espelho encantado, na descoberta feliz de tua própria imagem. Tu me olhas de dentro de um mundo maravilhoso e colorido, ilimitado, infinito, com olhos de busca e de espera, recompondo o meu todo que se fragmentou pelo tempo, pelo espaço e pela vida.

            Criança, o velho mundo nosso, velho mundo que pensas imenso, sábio, bondoso e terno, como terra de deuses, este mundo, criança, este mundo reúne o ódio, a inveja, a cobiça, o amor e a ternura na massa única da nossa diversa complexidade. Ainda não sabes do frio do asfalto, do concreto, dos porões … E todas as sombras, para você, são sombras repousantes. Não ambicionas nada mais que o brinquedo, o amigo, o chocolate, o sonho bom. Nada mais que o cosmo da ciranda cirandando.

            Fazes olhos de festa para a bolinha de gude ou de sabão e para o barquinho de papel e para o bolo de aniversário. Nós, nós que sabemos o quanto custa o sobreviver, sentimos o gosto doce-amargo de cada conquista porque nunca sabemos conseguir as coisas boas sem nos pisarmos no afã da corrida.

            Mas eu não quero que conheças agora o que machuca e faz chorar. Sabes? Neste papo solitário junto pedras para construir uma ponte e irei até onde estás.

“E meu corpo e meu espírito assumem dimensões espetaculares e redescubro-me criança, cheia de ternuras e anjos bons e bonecas e personagens sorridentes de um país encantado.

Sou, agora, a mão que afaga e multiplica gestos e leva flores. Sou agora o gesto que multiplica mãos cariciosas e infantis como plumas flutuando sonhos.

Sou, agora, os olhos ternos e surpresos que indagam de cidades e rios e mares dourados, porque ainda não se perderam na interrogação do caos.

Vovó Hermínia planta camélias no canteiro e amendoins na terra com cheiro bendito de um suor que não é o meu. Sigo-a. Tudo me encanta. E neste flanar de horas, dias, meses, entre os risos, aguardo o Natal que me trará a boneca de porcelana, porque a Zizi, que era de pano, há muito já morreu. Tudo me encanta e faço do hoje um domingo qualquer para ser feliz.

Canoinhas cheia de sinos! Canoinhas com gosto do pequeno lar burguês, meu lar feliz! Canoinhas varrida de sol e vento e glória e lembranças com roupagem de festa, encardida de ternuras como sangue novo encardindo artérias.

Da fragilidade do meu Eu-criança, escapo os olhos para a solidez do mundo. Tudo tão grande! As pessoas, também tão grandes, parecem ignorar tanta coisa! A formiguinha entre os meus dedos está morta. O formigueiro pisado. As flores … Crianças recolhem as flores que os adultos pisam. E, crianças, vislumbramos paisagens que só nossa pureza conseguirá descobrir.

Tenho um irmãozinho loiro, muito loiro, que cresce comigo. Este pai chamado Luiz e esta mãe chamada Ema cuidam de nós como se fôssemos quebráveis como a casquinha dos amendoins da vó Hermínia. Mas nós somos fortes, apesar de nossa pequenez porque carregamos contra as arestas o corpo moldável de nossa ternura.  E vamos crescendo como semente e caule e tronco e ramo e folhas e fruto. Algum dia nos bastaremos!”

Sim, criança, também sonhas com o dia do bastar-te a ti mesma, o dia da tua madurez. Porque invejas os adultos que pisam a flor e mandam nas crianças, porque invejas a nossa fortaleza e o poder de comando que as nossas vozes têm. Porque invejas a nossa liberdade e a nossa segurança.

Criança,

Menino, menina, esta é uma crônica não para um dia qualquer; nem por motivo qualquer. Estou escrevendo para não chorar. Estou escrevendo com inveja de ti, com saudade da menina que fui, com a vasta, vastíssima vontade de ser, de novo, criança, assim como és, simplesmente para não bastar-me, sozinha, para juntar as flores pisadas, para ser frágil e não possuir esta liberdade e esta segurança que os adultos ostentam sorrindo com medo de chorar.

Crê, tu és feliz. E a vida vale por razões diversas, mas, principalmente, por esta infância para a qual retornamos com frequência, para que não se espalhe sobre os ventos nossa parcela de Amor.

Aprenderás, também, o ódio e a tristeza. Aprenderás as cores reais desse nosso velho mundo girante. Terás, mil vezes, que tentar o encontro com o Homem, removendo mil máscaras. Verás, na lágrima, o que é alegria e o que é ser triste. E, então, criança, sentirás a responsabilidade de ser lastro e de conduzir a história.

E terá chegado, então, a hora de retornares, com frequência, à infância, para que não cesse de cantar em teus ouvidos o vento-sul de tua ternura.

Estou chorando. Não sei se de alegria ou se choro de tristeza. Não sei. A manhã nasceu bela e ainda está fria nesta primavera renovada, neste dia em que nós, adultos, reservamos para ti, criança.

A lágrima que corre pelo meu rosto tem a mesma salgadez das lágrimas de antes, do tempo em que aprendi as canções de ninar. Salgada. Quente. Infinita. Infantil. E a ciranda já não retorna. Mas é preciso cirandar.

Se nossas mãos já não se juntam como elos para fazer a ciranda-cirandinha, sabemos que, comparados a ti, criança, somos desimportantes, porque as arestas da vida e do mundo embaraçaram as cores de nossa Pureza, do nosso mundo infantil.

E nessa manhã, nessa Primavera latejante de emoções, eu beijo teu rosto sem marcas e sem máscaras e peço que, mesmo que mil anos se passem, conserves esta alma de criança, para que saibas, sempre, cirandar.

 

(O texto, em itálico,é da poetisa canoinhense Isis Maria Baukat, originalmente publicado no Jornal “Barriga Verde em Outubro/1974.)

 





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