Filomena e seu sonho II (final)


Filomena andava possuída de imensa tristeza que a consumia lá no fundo mais fundo de seu vulnerável ser.

Continuava com as lides do campo, semeando, plantando, colhendo, cuidando do gado, entregando o leite, batendo manteiga, lecionando na escolinha, enfim, fazendo o que sempre fizera. E vendo que a sua vida e a vida dos demais a seu redor se resumia em enxugar gelo…

Porque um escritório de uma cooperativa continuava sendo apenas, e sempre apenas, um mero escritório. Sem uma voz de comando ali. Só seguindo a manada com um chamado longínquo que não era bem ouvido na perdida distância daquele horizonte sem fins. E o marasmo, que grassava célere ao seu redor, começava a incomodar. E não só a ela que, em silêncio, aguardava a explosão da semente há tanto lançada em terra que era fértil.

Em veladas conversas ao pé do fogo, nas modorrentas noites, juntaram-se alguns poucos colonos e intimaram e desafiaram Filomena a assumir o escritório da seccional. Desafio que foi aceito.

E as coisas foram mudando. Muitos agricultores se apresentaram para fazer cursos de dirigente. E, juntos, foram pressionando a Federação para que a pequena seccional se tornasse uma Cooperativa singular. Nesse tempo Filomena já tinha passado o cetro para outro companheiro ocupar a coordenaria. E, mais uma vez, não foi o nome dela a encabeçar a diretoria. Foi humilde, reticente, não teve coragem de falar, de se impor, pensava (lá dentro dela) que seria indicada, que seu trabalho seria reconhecido. Engoliu a mágoa e ficou na vice-presidência, imaginando que na próxima eleição sua vez chegaria.

O trabalho principal era, realmente, dela. O amigo, só na figuração! Trabalho de formiguinha a levar, dia após dia as verdes e tenras folhas para dentro do ninho. E a nova Cooperativa foi se expandindo. Com a maioria dos agricultores da região tendo aderido ao chamado, fácil foi implementar uma série de ações que Filomena, há muito, havia sonhado.

Convenceu a todos que uma grande sementeira comunitária traria mais lucro na venda de hortaliças e leguminosas. Em um grande terreno adquirido assim foi feito. Com o adubo das compostagens de todos e com as sementes que a cooperativa comprava diretamente em grandes centros o projeto teve êxito. Na época apropriada cada um levava a sua quota de vicejantes mudas para replantar em seus sítios.

Contratados foram veterinários e agrônomos para ensinar e mostrar aos colonos a forma mais correta, mais moderna, mais econômica e mais saudável de se obter a melhor produção.

Depois de mais alguns anos Filomena se tornou presidente, não sem antes amargar profundo desgosto com traições e invejas mil. Porque o tempo de receber os coices e os revezes da vida ainda não havia acabado.

Aprimorara os sonhos da menina que fora ao chegar aos rincões do extremo oeste, mas, sentia a rigidez deste inclemente tempo em seus olhos, em seus ouvidos, em seus membros já lassos do cansaço, já doloridos pelo constante desgaste. E dava vazão às ideias que pululavam em sua cabeça. E trouxe, para falar com as crianças nas escolas, escritores que publicaram livros sobre as histórias dos campos.

Foram poucos os anos que ocupou o cargo máximo de sua cooperativa. Mas foi seu carisma, seu jeito de conversar com produtores e fregueses, seu estilo próprio de amenizar causas ditas perdidas que impulsionou sua pequena cooperativa e fez com que ela obtivesse os mais altos índices de produtividade e de rendimento dentre suas irmãs, em todo o país.

E, feliz, passou a presidência para um novo companheiro que a convidou para continuar com um cargo, assessorando-o nos muitos setores em que a presença dela seria imprescindível. E Filomena permaneceu, fazendo o que mais amava.

Há muito se aposentara como professora. E, nesses anos todos em que se dedicara, quase que exclusivamente ao bem comum, foi perdendo, aos poucos, a freguesia que em seu sítio se abastecia. Sem falar na produção de cereais que já nem mais tinha para ajudar a encher os silos de sua cooperativa. Seu sítio foi definhando pela falta constante de seus olhos para engordar o rebanho, de suas mãos para colher os ovos, de suas pernas para correr pelo campo a orvalhar e fazer vicejar a plantação.

Foi se desfazendo, aos poucos, de pedaços de suas terras. Porque a velha casinha construída, há uma vida, por seus pais necessitava reparos.

A cada sonho realizado para que o mundo ficasse melhor, sua gleba ficava menor.

E Filomena feliz. Porque a cada ano mais troféus, recebidos por prêmios conquistados, enchiam a sede da sua amada cooperativa. Prêmios pelo trabalho desenvolvido, pelas ações de sustentabilidade, pelo gentil atendimento dos funcionários.

Mas, e sempre há um mas em todas as coisas, repentinamente, a tempestade, o vendaval, um quase terremoto se abate sobre os sonhos de Filomena. Novos tempos, novos dirigentes, gente nova chegando com novas ideias. Ávidos apenas pelo lucro imediato deram a Filomena o nunca esperado cartão vermelho alegando contenção de despesas.

Ombros caídos, corpo arqueado, subiu em sua velha camionete e rumou, solitária, para o seu cantinho só.

O choro, convulso, não chegou de repente. Primeiro vieram os soluços, que ela, teimosamente, tentava abafar. Mas eles vieram. Depois. Em borbotões. Em avalanche. E esperando, dia após dia, sozinha, que seu velho companheiro de lutas, dirigente maior agora, velho companheiro que lhe dera o veredicto final que a fez sucumbir, aparecesse em seu perdido cantinho para uma palavra amiga, um pequeno conforto apenas. Mas ele jamais apareceu.

Filomena ainda tentou fingir uma pétrea fisionomia e comparecia em algumas reuniões. Até o dia em que, em letras garrafais, em um demonstrativo financeiro, foram colocados os valores que a cooperativa deixara de desembolsar colocando um funcionário para fazer o trabalho que ela havia lá implantado.

Filomena arrendou o resto da gleba porque já não conseguia mais trabalhar no amaino da terra, nos cuidados com o gado leiteiro, com os frangos de corte, com as galinhas poedeiras, com a produção de hortaliças … com …

Vive, agora, deste pouco do arrendar e do pouco da aposentadoria pelos tempos das salas de aula. Uma vida quase monástica.  Embalada por seus sonhos. Porque ela sabe dos frutos de seus sonhos. Ela sabe das sementes que deixou. E que vicejam. Embora os de agora a ignorem como ignoram a intensa luta que ela travou em seus tempos de juventude.

Porque sabe que mesmo que nada falem, mesmo que nada digam, mesmo que nada escrevam eles e elas sabem do legado que deixou.

E, embora não o reconheçam, publicamente, à noite, quando as trevas cobrem o mundo e os corações, a lembrança de quem foi Filomena empana as luzes e as glórias que acreditam sentir.

 

 

Dedicado a todas as Filomenas da vida!





Deixe seu comentário: