A razão do dissenso é o desafio do centro


A disputa pelo poder está marcada pelo pavor à verdade e ao ostracismo

 

 

 

 

 

Walter Marcos Knaesel Birkner*

 

 

Um homem honesto me perguntava porque, atualmente, é tão difícil chegar a consensos na política. Concordei com o teor da pergunta e, sem respondê-la, disse que seria tão evolutivo quanto momentaneamente utópico que católicos, evangélicos, muçulmanos, luteranos, candomblecistas, espíritas e ateus, cientistas, empresários e trabalhadores, homens de bem, sentassem a uma mesa e buscassem pontos de convergência sobre o Brasil. É claro que isso é possível, mas, na política intoxicada pelas mentiras nas redes sociais, isso é difícil. É porque a disputa pelo poder está marcada pelo pavor à verdade e ao ostracismo.

 

 

 

 

Ao contrário do que supõe o maquiavelismo amoral vulgar, consensos morais e republicanos produzem evolução civilizatória. O Brasil já foi exemplo internacionalmente reconhecido pela capacidade de estabelecê-los e avançar. Mesmo atualmente, consensos republicanos são possíveis mundo afora, a exemplo de sociedades cujas razões das celeumas são essencialmente as mesmas: disputas pelo poder. Mas o nível republicano e moral pode superar o caos – veja-se a série Borgen, na Netflix, um primor de realismo político, onde não há anjos, mas as disputas são filtradas pela civilidade republicana.

 

 

 

 

A incivilidade leva à trajetória da conflagração política. Esta, por sua vez, nos conduz à conflagração social e ao empobrecimento, lento, gradual e seguro, estatisticamente comprovável na história das nações. Em termos mensuráveis, não é outra a razão do subdesenvolvimento, demonstrável pela relação entre a instabilidade política e subdesenvolvimento no ranking internacional. E, nesse terreno do vale tudo, a mentira é a arma dos bárbaros a espalhar o ódio. Seu poder de convencimento eleva os extremos, que se aproximam, imoralmente pelo método, e distanciam as pessoas de bem da verdade e entre si.

 

 

 

 

Esse é o cenário que ainda vai se asseverar até 2022. Ele será atenuado pela volta do crescimento que quase todos queremos. Mas a mentira será fomentada até às últimas consequências, porque, repita-se, é a única maneira de manter os extremos em evidência e evitar que o bom senso caia no gosto do eleitor. Mesmo com perna curta e fôlego limitado, essa personagem de nariz comprido aspira o ar que for possível pra que seus “pinóquios” cheguem vivos às eleições. O cenário pode ser de terra arrasada e a verdade como poeira no ar. Mas homens e mulheres de bem devem saber: é pra desviar o foco do centro.

 

 

 

 

 

Mas por que? Porque a mentira só sobrevive nos extremos, de onde mantém vivos a conflagração, o ódio e a vingança. E o propósito dos mentirosos é manter a imagem de um inimigo mortal, convencendo-nos de que só há dois lados e não existe centro de convergência. Só assim eles mantêm a perspectiva do poder. Mesmo perdendo, sobreviverão, se capazes de controlar a opinião dos séquitos, mantendo a perspectiva de voltar. Não é a derrota que os apavora. É o ostracismo da política, depois que a verdade vem à tona. Esse será o grande desafio do centro: falar a verdade e torná-la mais convincente que a mentira.

 

 

 

 

 

E a verdade não vive nos extremos. Ela não precisa de exageros, é o que é, simples assim. Por vezes, é difícil entendê-la, principalmente quando não nos informamos, deixando que os mentirosos nos informem. O fato é que os mentirosos só têm público porque todos nós, a rigor, temos uma queda pela mentira. Ideologias e narrativas ajudam a nos personificar e socializar. Nos fazem sentir seguros, identificados e aceitos em grupos sociais que afastam nosso temor natural da solidão, do banimento e da irrelevância. A busca da verdade exige coragem e desprendimento.

 

 

 

E do que os mentirosos não conseguem se desprender? Do prestígio, da vaidade, da adulação, da grana, da fama e do patrimônio público em benefício próprio. E, se as pessoas de bem se sentam a dialogar e procurar pontos de convergência, a verdade vem à tona e prenuncia o fim das ilusões mitológicas. Por isso é necessário mentir o tempo todo, criando factoides, destruindo reputações, criminalizando a política, jogando homens de bem uns contra os outros, enganando os ingênuos e abastecendo os predispostos a evitar a verdade, que abala convicções e exige evidências sobre o que se fala.

 

 

 

 

O inimigo do mentiroso não é seu outro extremo. É o centro, onde a verdade se acomoda e os honestos respiram. Não me refiro ao “centrão” do Congresso, embora ali também se mostre a verdade da política como ela é, onde o falso moralismo do combate à corrupção se desnuda. Me refiro ao centro das convergências, dos valores civilizatórios, da prudência e do diálogo franco. É o espaço que os extremos evitam a todo custo, é onde os mentirosos sentem falta de ar. E a atual dificuldade do consenso está na habilidade dos extremos em nos manter distantes da verdade. É a isso que chamamos de pós-verdade.

 

 

 

Mas não tolhamos o debate irascível, muito menos intencionemos proibir a mentira. Esse parece ser o erro dos que defendem a democracia mas temem a perda do controle. É claro, tudo é possível, incluindo o pior. Ainda assim, o maior dos desafios civilizatórios é impedir o sono da razão, que, como disse o filósofo, produz monstros, entre eles a mentira. Deixemos essa decisão ao livre arbítrio de cada um, um risco que toda sociedade precisa se dispor a correr. Nada de calar a boca dos mentirosos, cujo destino prometeico, queiram ou não, é instigar a verdade. Paradoxo: é exatamente assim que ela aparece.

 

 

 

 

 

As eleições de 2022 já começaram e isso tem seu lado bom. Haverá tempo pra discutir, como o Brasil não discutia há décadas. Com a liberdade e os meios de comunicação disponíveis, não faltarão informações, nem desinformações, mas também debates e análises sobre os quais cabe ao livre arbítrio decidir. A mentira ultrapassará limites, porque as tecnologias o permitirão e porque, aos inescrupulosos, o que está em jogo não é o processo civilizador, mas o apossamento do patrimônio público. E o pavor suicida dessa gente é que a verdade caia no gosto do eleitor e os destine à irrelevância que lhes cabe.

 

 

 

*Walter Marcos Knaesel Birkner é sociólogo e professor da Uniasselvi





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