O passageiro da neblina


(Mais um desabafo perdido no tempo)

 

Resquícios que afloram e volteiam em torno das mais remotas e enevoadas imagens são como ânforas lacradas e há muito enterradas.

Lacradas e sedimentadas com as tuas lágrimas que se cristalizaram no tempo, lacradas e sedimentadas com as tuas mágoas que se solidificaram no tempo.

E então vem à mente aquela música que o som da chuva batendo no telhado te faz lembrar e olhas para o cemitério das recordações onde ela, a ânfora, se encontra, cheia de pedaços lascados de teu coração…

… as melodias que ficaram no ar… as nuances do aroma de um perfume que a brisa faz passar diante de ti… o ruflar dos ramos nos palmeirais…. o sussurro das ondas beijando a areia… o trinar dos pássaros em teu jardim ou no bosque por onde passas… o roncar de um mar enfurecido contra os rochedos…

… e tudo aflora à superfície, tudo o que no longínquo parecia um vulcão vertendo lavas, cuspindo cinzas, fazendo malabarismos de fogo no espaço.

Mas são múltiplas as ânforas lacradas e enterradas e, em cada uma, uma história.

Entre elas, um desabafo a mais perdido no tempo… de um amor que foi passageiro da neblina.

“Indefinido amanhecer de lembranças molhadas em transparente névoa… indefinido amanhecer sem conhecimento e sem memória… indefinido amanhecer incolor que a tua presença, a tua surpresa, a nossa descoberta, o nosso encontrar, transformou em espaços azuis de horizontes sem fim.

Calma e tranquila presença naquela madrugada cheia de um céu de chumbo, cheia de pingos de lama a contagiar o infinito de luzes, de sons, de calor. E de amor.

A angústia. A surpresa. A espera. O sorriso. E o carinho. O desvendar das emoções caladas. A lama da estrada, sob os pneus, cantava canções de ninar. E a neblina envolvente a transformar aquele pedaço de terra em paisagens de céus.

No teu sonho alucinado, na vibração dos teus olhos, em teu sorriso aberto foste me encontrar sorrindo. E sorrindo eu fui desenterrando, um a um, punhados de ilusões. E construindo outro sonho. Com as rosas que me enviavas. Com teu sorriso de criança. Com teu louco sonho de amor. Louco sonho que depois fluiu pelos meus dedos e se esparramou pelo vazio do infinito em minha frente.

Revejo agora nos espaços muito brancos do meu sonho, a silhueta contrastante de um amor embaciadamente envolto nas névoas da madrugada…

Um sorriso nervoso de quem há milênios aguardava um sorriso… Um olhar de brilho intenso – o teu olhar…

E uma esperança enconchada há tanto tempo – a tua esperança.

As horas todas de uma longa espera em um punhado de horas – as horas da tua espera.

Foi o chegar de um amor que tu mesmo inventaste. E veio até mim como em um turbilhão. Cresceu. Transbordou. E choraste na emoção incontida dos nossos sorrisos de amor. Sim, choraste na certeza vivida de um sonho julgado impossível. E os dias a passar te trouxeram cada vez para mais perto de mim e me levaram inteirinha para junto de teus braços.

E da distância me enviavas flores… sonhos de amor… sorrisos de criança…

 

E, perdido dentro da noite assististe à luta de uma pequena chama que tentava vencer o frio. Que te livrasse do frio… do frio da tua noite interior.

E não querias ficar triste se o frio da noite vencesse, porque sentias dentro do teu eu misterioso à luta da pequena chama bruxuleante… e não choraste porque a noite estava linda e fria lá fora… muito fria, com um céu todo coberto de estrelas.

E sentiste então que o frio que quase te destruiu dentro de tua imensa noite foi findando com a chegada de uma trêmula e pequenina chama.

E eu me enternecia com as divagações que a tua alma imprimia naqueles líricos papéis que me enviavas.

Não pressenti o frio que sentias e jamais imaginara ser luz ou calor em tua vida.

E sonhamos ao crepúsculo de muitos sóis de primavera.

E sorrimos com as espumas se diluindo nas areias…

Em muitas madrugadas aguardamos a lua que, como côncava canoa, se enterrava no horizonte.

E juntos nós voamos nas asas deste amor que inventaste.

Mas estas asas eram frágeis e eu não percebia.

Quando elas se romperam e se transformaram em pó entre meus dedos, quando elas se diluíram como fino papel em manhã de neblina eu resvalei pelos espaços e fiquei girando em espiral. E sem conseguir mais colocar meus pés em terra firme, fiquei a divagar pelo infinito em busca de outras asas para dependurar o meu desmoronado eu.”

 

 

            (O texto original, entre aspas, foi publicado

no Semanário Barriga Verde, em 1975.)

 





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