Os crimes das caladas da noite (II)


Ela jamais imaginara tanto horror em tão poucas horas

 

 

 

Na cidade praiana uma diferente vida estendia-se à frente da jovem e impetuosa Márcia. Sabia que não seria fácil enfrentar sozinha os embates em um mundo estranho, ainda, para ela. Mas vinha com uma tão grande força interior e a sorrir apresentou-se ao diretor do jornal.

 

 

Imaginara que poderia continuar morando na casa de seus pais lá entre os grotões no meio das serras. Era só tomar o ônibus de manhã, fazer o trabalho no jornal e à noite retornar ao aconchego dos seus. Imaginara!

 

 

De súbito rompe-se o chão a seus pés. O diretor apresenta-a ao chefe de redação das páginas policiais. A conversa é rápida. Entregam-lhe uma quase nova máquina fotográfica Rolleiflex, vários rolos de filmes em preto e branco, um minigravador portátil e um papel com endereço do local onde deveria ficar de plantão e captar suas primeiras notícias. Para começar, aquela parafernália toda não cabia em sua bolsa.

 

 

 

Agradeceu a confiança que nela depositavam, respirou fundo e saiu, em desespero, para a rua. E agora? Onde vou dormir? Onde ficarei? Um trabalho que só poderia ser realizado à noite. E no Pronto Socorro! Procurou um telefone público. Ligou para quem lhe dera a mão na capital. Doutora Léa logo lhe deu um endereço. A casa de uma amiga dela que ficara viúva e, por morar sozinha em uma casa muito grande, alugava quartos.

 

 

Era cedo ainda. Márcia foi até o endereço dado pela médica. Teve que tomar um ônibus no centro da cidade a fim de dirigir-se a um dos bairros que ficavam à beira-mar. Dona Marina, uma senhora de cabelos brancos, já a esperava. Só estranhou que Márcia estava sem bagagens, sem mala. Conversaram. Explicaram-se.

 

 

O que dona Marina não entendeu muito bem foi a história de que o serviço de Márcia tinha que ser realizado à noite… Mas como conhecia a família da médica que lhe recomendara a moça, calou-se.

 

 

Márcia não sabe até hoje como conseguiu tomar um ônibus, ir até seu vilarejo, pegar uma carona com um amigo, ir até sua casa, pegar seus pertences, suas roupas, seus livros e sua pequena máquina de escrever, sua inseparável Olivetti portátil. Toma o último coletivo do dia que quase já se arrancava do ponto. Os últimos raios do sol perdiam-se atrás da grande muralha, que separa o planalto do mar, quando ela jogou suas tralhas sobre a cama de sua nova morada e partiu, em disparada, para o destino que a esperava em pleno Pronto Socorro.

 

 

 

Que fica anexo à Santa Casa de Misericórdia. Apresentou-se na portaria. Mostrou suas credenciais. Notou sorrisos de escárnio. Mal ouviu uns cochichos.

 

 

—Mais um urubu. Agora mandam uma garota atrás de carniça.

 

 

 

Márcia fez de conta que nada ouvira. Apenas disse-lhes que estava ali, não só para contar ao mundo sobre as pessoas que, em frangalhos, por lá apareciam. Ela queria saber os motivos, as razões, os porquês de tanto sangue derramado, de tantos ossos esfacelados, de tantas vidas perdidas.

 

 

Mas ela jamais imaginara tanto horror em tão poucas horas. Quando deu por si, seu estômago já embrulhara ao máximo. Não conseguiu esconder as emoções. Quase em paciente foi transformada também. Além de ouvir mais sorrisos de deboche.

 

 

—Esta não volta mais aqui—falou, rindo muito, um veterano enfermeiro.

 

 

Mas voltou. E tornou a voltar. E a ver, a fotografar, a anotar em seu caderninho os importantes detalhes que na manhã seguinte o jornal publicava.

 

 

 

Já era alguém que fazia parte da equipe de saúde do Pronto Socorro. Com sua pena ágil e palavras coerentes galgou mais um posto no jornal. Continuava na árdua tarefa de contar ao mundo as mazelas que via, diariamente, chegar.

 

 

 

Nunca ficava até muito tarde catando notícias. Mas aquela noite era aniversário de uma das enfermeiras e do lanche da madrugada fazia parte um bolo comemorativo. Era uma noite de sábado. As piores noites de um Pronto Socorro. Foi assim que Márcia viu chegar aquela jovem estraçalhada. Rosto banhado em sangue. Membros inferiores esmigalhados. Vestes finas encharcadas com o vermelho que de seu corpo saía. Enquanto os médicos a socorriam Márcia saiu para fora e encontrou um policial em prantos. Um dos policiais que atenderam a ocorrência. Um carro esporte, conversível, esfacelara-se na traseira de um caminhão. Praticamente entrara sob a carroceria do grande veículo. O rapaz que estava com ela ficou já no necrotério.

 

 

 

No dia seguinte Márcia soube que a garota sobrevivera. Visitou-a em seu quarto, na ala particular da Santa Casa. Soube então que ela era filha de um rico empresário da capital. Cirurgiões plásticos passaram a noite a reconstruir sua face. Mas os membros inferiores foram amputados quase ao nível da virilha. Teve também que passar por uma grande cirurgia na cavidade abdominal e estava com os braços engessados.

 

 

Mais de duas semanas a jovem ainda permanecia sob cuidados médicos. O que mais impressionou Márcia foi a naturalidade com que ela contou a história. Que tinham saído de uma festa. Beberam muito. No carro ainda deveria estar a garrafa de refrigerante de laranja com vodca que vinham bebendo na estrada afora. Cortavam o vento. Não lembra do resto. Suas faces já estavam cicatrizando. A manicure polia e coloria as unhas de suas mãos. De súbito pede a ela que não se esqueça de arrumar as dos pés também… Silêncio no quarto. Olham-se enfermeira, manicure e Márcia. A garota arregala os olhos, estupefata. E solta uma gargalhada, dizendo que sentia, e muito bem, suas pernas e seus pés. Que estava tudo normal. E até convidou a jornalista para a festa que faria no dia em que tivesse alta do hospital. Sorria feliz.

 

 

 

Márcia saiu dali sem saber se gritava ou se chorava. Não conseguia, realmente, entender o que se passava na cabeça daquela menina. Estaria dando uma lição de resignação? Ou ainda não atinara com a realidade. Vidas perdidas em uma noite de alucinação.

 

 

Mas nada do que ela já havia visto e documentado poderia ser comparado à cena com que se deparou certa vez. Não era meia-noite, ainda, quando os policiais trazem uma garota quase sem vida. Um horror jamais imaginado aos olhos de Márcia. Sobre a maca, envolta em sangue coagulado e lama pútrida e fétida, alguém que mal se mexia. A enfermagem alucinada a procurar sinais de vida, a tentar retirar os resíduos que recobriam a pele. O cirurgião a dissecar uma veia para infundir líquidos com maior rapidez. Outro médico a examinar o corpo. E foi então que, ao rasgarem o que sobrara das vestes estraçalhadas; viram o escárnio a que a quase menina havia sido submetida. Coxas lanhadas em sangue. Períneo arrebentado desde o púbis até o cóccix. De dentro de sua vagina escoria uma lava marrom-avermelhada e mal vislumbrados vestígios de esperma.

 

 

Enfermeiras choravam. Médicos explodiam em xingamentos aos monstros que aquele crime haviam perpetrado.

 

 

— Vários monstros humanos, sim! —Falou em alta voz, um dos que a examinavam. —Um homem sozinho não conseguiria fazer tamanho estrago…

 

 

 

Era uma menina. Nem quinze anos devia ter. Esbaldados foram todos os esforços. A última e débil onde que o eletrocardiograma mostrava acabou por se estender em fina e longa linha horizontal.

 

 

A cabeça de Márcia em turbilhões. Os policiais lhe contaram que ela fora encontrada em um dos canais, já quase perto do mar. Foram chamados por um pescador solitário que àquelas horas costumava procurar caranguejos trazidos pelas águas que do mangue desciam pelo canal.

 

Quem era o pescador? Márcia já pensou em correr atrás para saber mais detalhes. O jovem policial, que ela já conhecera dias atrás, aconselhou-a a esperar pelo dia seguinte e so ir lá com mais alguém da redação.

 

 

Quem era a menina? Onde morava? Incógnitas para a polícia civil que deveria investigar o crime. Incógnita para Márcia que precisava descobrir os porquês. Ela jamais se acostumaria em contar uma história linear. Precisava ir às profundidades.

 

 

Não poderia publicar a fotografia da moça no jornal. Isto jamais ela faria. Nem imagens do corpo dilacerado. Mas uma foto na mesa do chefe de redação chamou sua atenção. Era a própria menina assassinada por monstros que dela usufruíram da maneira mais torpe e degradante que um ser vivo poderia sofrer.

 

 

—Uma senhora desesperada esteve aqui dizendo que sua filha desapareceu há dias e deixou esta fotografia pedindo que a publicássemos.

 

 

 

—Esta é a menina que aqueles monstros assassinaram! — Disse Márcia, quase gritando. E eu vou descobrir toda esta história.

 

 

 

Foi assim que começou a romaria de Márcia pelos bas-fond da cidade praiana.
Até onde a nossa jornalista investigativa se infiltrou a fim de mostrar a crueza da exploração sexual de jovens mulheres fica para eu contar na próxima semana.





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