Política e niilismo: ou da proximidade do juízo final II


Obra O Juízo Final, de Michelangelo/Reprodução

É fundamental paralisar a máquina política, jurídica e econômica que produz cotidianamente a pequena política

 

 

Dr. Sandro Luiz Bazzanella*

Doutorando Luiz Eduardo Cani**

 

 

A partir de uma perspectiva nietzschiana num primeiro momento o niilismo se apresenta como percepção do vazio de sentido e de finalidade das instituições, das formas de representação política, da hegemonia e atuação de um modelo econômico de plena produção e consumo. Noutra perspectiva, a afirmativa, o niilismo é a oportunidade de gestação de condições diferenciadas de atuação na constituição de formas-de-vida individual e social na imanência do presente em curso. Assim, o niilismo ativo é uma oportunidade de afirmar a vida e o mundo na forma como se apresentam e, sob tais condições de participar intensamente dos debates em torno de suas condições de possibilidade no tempo de agora, no tempo que vem a cada instante carregado de potencialidades imanentes de vida e de mundo.

 

 

Assim, se os fatos e acontecimentos cotidianos demonstram de forma peremptória que definitivamente deus não é brasileiro – pois se o fosse “Moisés” em Santa Catarina teria se livrado do impeachment e, o “Messias” não estaria se apresentando na forma do anticristo em Brasília – isto significa que é apenas por meio do adequado e ponderado uso da razão que se pode alcançar uma condição humana e civilizatória suficiente.  Ou dito de outra forma, aprofunda-se a percepção de que a democracia representativa em curso representa somente os interesses dos grupos sociais e econômicos que controlam seu funcionamento. Desta afirmação, não se autoriza o leitor apressado, aligeirado concluir que se faz necessário a implementação de um governo forte, autoritário, com suposta “reserva moral”, o que justificaria suas inclinações totalitárias. Estas formas ingênuas, senão messiânicas em alguns casos, ou mesmo pervertidas em outras e, habitam o imaginário de muitos “homens de bem” que surgiram nos últimos tempos no conturbado e nada pacífico contexto social brasileiro.

 

 

 

Diametralmente oposto a tais reducionismos, o que se quer afirmar é que aquilo que se nomeia de democracia na atualidade apresenta-se como técnica de governo, que permite a determinados grupos sociais e econômicos a reprodução de discursos de afirmação permanente de um estado de crise, de um estado de emergência, a partir do qual se justificam a retiradas de direitos sociais de parcelas significativas da população, a implementação de técnicas de controle e segurança sobre trabalhadores formais, informais, ou mesmo, sobre amplas parcelas de indivíduos consumidores.  Ou seja, sob o argumento de um estado de crise permanente, de inimigos imaginários da sociedade e do Estado se justifica a implementação de um estado de exceção a partir da qual governos com tendências totalitárias fazem a gestão da vida biológica a partir dos recursos individuais e populacionais a disposição, assim como estão à disposição os recursos materiais presentes no território.

 

 

 

O reconhecimento da ausência de fundamento, de profundo vazio, de inexistência de  sentido e finalidade (niilismo) da democracia representativa – constituída ao longo da trajetória das sociedades ocidentais na modernidade, assentada em instituições representativas dos diversos segmentos sociais, ou mesmo da vontade popular, bem como na interdependência dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) legitimados por sufrágio universal, por parlamentos, ou colégios eleitorais  – requer o reconhecimento da necessidade de reafirmação da democracia sob outras variáveis e formas de representação diante dos desafios contemporâneos em curso.

 

 

É neste contexto, que se apresenta o niilismo em sua potência criadora. Trata de reconhecer que uma das características determinantes da democracia é sua condição de imperfeição.  Diferentemente de regimes despóticos, totalitários, ditatoriais em que as vontades de determinados grupos, de ditadores, de lideranças populistas se impõem de forma abrupta sobre indivíduos e sociedades, a democracia requer o envolvimento dos cidadãos com a manutenção e preservação do espaço público em sua pluralidade de formas, de ideias e, de liberdade de expressão.

 

 

 

A democracia é exigente. Requer disposição dos indivíduos em dispor de tempo para compartilharem e se envolverem com as questões públicas.  Necessita de indivíduos bem informados e dispostos a reconhecer as diferenças entre a boa informação e fake news. Zelosos pela busca fundamentada de conhecimentos em torno das questões públicas. Sensíveis ao bom argumento e ao sereno debate público necessário a tomada de decisões estratégicas em relação ao bem público como forma de preservação dos bens de uso comum.  Ainda nesta direção, a democracia requer que indivíduos e sociedades reconheçam o fato determinante de que o mundo é resultado da ação humana. Não há outro caminho possível para preservação e continuidade do mundo humano e, da vida em sua multiplicidade de formas de manifestação que não seja pela ação conjunta, pela política, pela liberdade de expressão de ideias e concepções públicas.

 

 

 

No próximo dia 15 de novembro nos 5.568 (cinco mil quinhentos e sessenta e oito municípios) brasileiros, milhões de indivíduos dirigir-se-ão às urnas para a escolha de seus representantes no poder executivo local (prefeito) e no legislativo (vereadores).  Serão eleitos representantes para os dois poderes que justificam a existência da democracia representativa. Os membros do poder judiciário não são eleitos. Alcançam seus cargos por meio de concursos públicos, ou por indicação do poder executivo estadual, ou federal, o que significa que suas decisões se circunscrevem no âmbito da legalidade, mas não necessariamente se apresentam legitimas em muitas situações em relação aos interesses populares.

 

 

 

A escolha dos candidatos ao executivo e ao legislativo se dará após 45 dias (quarenta e cinco) de campanha eleitoral.  Eleição que se caracteriza pela complexidade imposta ao eleitor em escolher dois candidatos para dois poderes distintos, com funções diferenciadas: executivo e legislativo. Mas, complexidade também imposta àqueles candidatos com disposição para a apresentação e o debate público de suas propostas.  Ao executivo compete gestar, propor, elaborar e implementar políticas públicas e programas sociais que atendam as demandas públicas. Ao legislativo compete analisar e votar projetos de implementação de políticas públicas, propostas de programas sociais, ou outras ações no âmbito da administração pública proposta pelo executivo.  Ainda nesta direção, compete ao legislativo acolher demandas públicas e articular diálogo com o poder executivo com intuito de contribuir com possível encaminhamento e solução a tais demandas.  A descrição sucinta das atribuições dos poderes executivo e legislativo demarca a complexidade da escolha a ser feita pelos eleitores.

 

 

 

Ainda nesta direção, é preciso acrescentar a esta complexidade, o fato de ser uma eleição para dois poderes distintos em sua funcionalidade no contexto de uma única campanha.  Dependendo do número de partidos participantes do pleito eleitoral, o número de candidatos ao executivo pode ser significativo e, ao legislativo apresentar-se-ão as dezenas, senão as centenas.  Assim, tem-se uma eleição que se dará a partir de uma campanha com tempo de propaganda, de diálogo e debate político em torno das questões públicas diminuto, com centenas de candidatos disputando vaga num dos dois poderes que em tese deveriam legitimar democracia representativa.

 

 

 

É nesta perspectiva que se apresenta o niilismo da pequena política característica das sociedades de massa absorta quase que integralmente nas exigências da plena produção e do pleno consumo. Ou seja, neste cenário os indivíduos não dispõem de tempo para ouvir propostas políticas, para o diálogo e o debate em torno das questões estratégicas que envolvem o espaço público. Na pequena política de matiz niilista em curso talvez não seja possível falar em espaço público, na medida em que a campanha eleitoral passou a ser sinônimo por excelência de interesses privados.  Assim, uma campanha se apresenta como única justificativa possível para a existência de dezenas de agremiações partidárias (outrora chamados de partidos com suas ideologias políticas definidas) que lançam candidatos com o intuito de controlar a máquina pública como forma de contemplar interesses privados específicos. Ato contínuo eleitores desprovidos da compreensão das distinções entre público e privado, concebem o período de campanha como oportunidade de benefício privado a partir da negociação de seu voto com algum candidato disposto a pagar preço “justo”.

 

 

 

Todas estas variáveis analíticas e outras mais que poderiam ser colocadas em jogo na análise demarcam o niilismo da pequena política, que se manifesta na derrocada das instituições constitutivas da democracia representativa. É fundamental que este mal-estar diante do vazio de sentido promovido pela pequena política se aprofunde nestas e nas futuras eleições em âmbito local e nacional como forma de um sofrido reaprendizado de que não há mundo humano suficiente desprovido de ação política comum suficiente. “Não é a economia, é a política estupido!”[1]  É somente pela ação comum entre comuns que o espaço público existe e pode ser compartilhado. É o espírito republicano que garante a vitalidade da grande política que se caracteriza pela afirmação do humano como um fim em si mesmo, bem como promove o cuidado com a vida em sua multiplicidade e totalidade de formas como estratégia de cuidado e continuidade da vida humana compartilhada.

 

 

 

 

Diante dos presentes desafios e afrontas à vida, à natureza, ao mundo, bem como diante das mais variadas obtusidades e violências levadas adiante por governos ilegítimos (mesmo que legalmente eleitos) é fundamental paralisar a máquina política, jurídica e econômica que produz cotidianamente a pequena política manifesta na derrocada da democracia representativa de matriz burguesa em sua origem. Há uma grande política que vem cotidianamente expressa no mal-estar, na percepção, senão na intuição dos indivíduos em sua cotidianidade de que se faz necessário inventar novas formas de representação, de preservação do espaço público, de revitalização do espírito republicano.  É preciso que o ser-humano rastejante da pequena política morra definitivamente. Neste momento ele agoniza e, poderá ficar assim por tempo indeterminado, mas sua morte poderá se apresentar como a aurora de uma grande política… ou, por reverso a derrocada final do humano esse animal indefinível, complexo, cooperativo, competitivo, sociável, agressivo e no limite de seus interesses disposto  à belicosidade.

 

 

 

 

*Dr. Sandro Luiz Bazzanella é professor de Filosofia

 

**Doutorando Luiz Eduardo Cani é professor de Direito

 

 

[1] Esta expressão trata-se de uma contestação a frase elaborada pelo marqueteiro do então candidato a presidência dos Estados Unidos e Bill Clinton, James Carville. “Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, venceu a Guerra do Golfo e resgatou a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O marqueteiro de Clinton, James Carville, apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e cunhou a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!”  Matéria na íntegra disponível no link: https://www.institutomillenium.org.br/economia-estpido/. Acessado em 05/11/2020.

 

 

 

 

 





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